“Conheci crianças que pediam por tudo para voltar para os pais”

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Episódios de violência física entre os menores e de ofensas verbais eram frequentes Nélson Garrido

Quando a jornalista Florence Bellone começou a investigar a protecção das crianças no Reino Unido em 2010 não se apercebeu logo da “economia de serviços” que crescera em volta do sistema. Nessa altura, “ainda estava no estado de horror” de quem assiste, incrédula, a dezenas de casos de “crianças arrancadas à família que as ama e entregues a uma outra que não conhecem”, conta ao PÚBLICO. Só mais tarde percebeu que as decisões dos Serviços Sociais encaixam num sistema em que todos beneficiam: autoridades locais, agências de adopção (públicas, semiprivadas ou privadas), famílias de acolhimento temporário, peritos forenses, médicos, psiquiatras e psicólogos.

Ocultando a identidade de jornalista da Rádio Televisão Belga Francófona (RTBF), e desempenhando o papel (previsto no sistema) de defensora de famílias sem advogado, assistiu a audiências em tribunais de família. Também esteve presente em reuniões de responsáveis dos Serviços Sociais nas quais se preparava o processo da retirada de uma – ou várias crianças – de uma família.

Durante meses – e depois anos – investigou. Conseguiu que as pessoas lhe contassem a sua história fora do Reino Unido, porque no país podem ser presas se falarem enquanto decorre o processo. A sua reportagem, inserida numa série de várias sobre o tema e que venceu na Europa o Prémio de Jornalismo Lorenzo Natali 2011 na categoria de rádio, não pretende apagar os casos de menores a viver situações reais de maus-tratos, negligência e perigo. Antes expõe milhares de outras situações, desconhecidas, de crianças retiradas às famílias em processos “pouco transparentes”, com base em “queixas menores”, “erros de sinalização” ou suspeitas sem provas, defende.
 
Viu bebés a serem levados da maternidade, por as mães estarem referenciadas nos Serviços Sociais como instáveis ou vulneráveis – por elas próprias no passado terem pedido apoio psicológico, sofrido agressões dos companheiros ou terem sido abandonadas. Ouviu mães e pais a enlouquecer em tribunal e viu a sua loucura apenas reforçar, contra eles, o caso apresentado pelos serviços sociais. Conheceu crianças que pediam para não ficar nas famílias de acolhimento. “Suplicavam. Queriam voltar para os pais”, enfatiza.

E assistiu à inacção de consulados de vários países – que diziam nada poder fazer para ajudar as pessoas e se mostravam apenas dispostos a fornecer os nomes de possíveis advogados. Percebeu como aceitavam o sistema sem o confrontar. A tendência é “não afrontar” o Reino Unido, diz,  embora aponte excepções como o exemplo do Governo da Eslováquia, que ameaçou levar o país ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, conseguindo assim que duas crianças eslovacas voltassem para a sua família.

“Duras questões” 
O júri do Prémio Lorenzo Natali salientou o mérito da investigação de Florence Bellone em expor “duras questões para o Governo do Reino Unido” – no plano dos direitos humanos e da liberdade de expressão – e uma realidade “suprimida” pelas autoridades: a da retirada, na altura, de mais de 10 mil crianças por ano, e que hoje serão 30 mil, sustenta a autora da reportagem “Grã-Bretanha: As Crianças Roubadas”.

“São retiradas aos pais de forma arbitrária, ao mínimo pretexto, para serem colocadas em instituições ou no mercado da adopção”, defende a jornalista. “É o que acontece na maior parte das vezes. O Estado decide quem pode ser pai ou mãe.”

Foram muitas as pessoas que Florence Bellone conheceu a viver uma situação que “as destruiu” para a vida. E para cada uma dessas pessoas tem uma história. Marcaram-na especialmente o tom e das palavras de uma assistente social, ainda no hospital, a dizer a uma mãe que esta não seria capaz de criar o seu recém-nascido, porque sofrera muito no passado: fora violada em jovem e sofrera agressões do companheiro. Nunca faria, por isso, boas escolhas para si e para o filho. O bebé foi-lhe retirado.

Às experiências mais marcantes, Florence Bellone junta uma convicção: a partir do momento em que os Serviços Sociais tomam a decisão de levarem a criança é difícil parar a engrenagem. “Raramente vi que pudesse ser feita marcha atrás. O superior interesse da criança é sempre visto numa óptica extremamente estreita por todos os profissionais envolvidos no processo, desde juízes a peritos – como médicos ou psicólogos – chamados a intervir”, refere. “Nunca se coloca a questão de a criança poder ficar traumatizada por ser tirada aos pais ou por viver numa família de acolhimento.”

E mesmo quando o juiz expressa preferência por manter a criança com os pais, tende a ser mais sensível aos “receios” dos assistentes sociais, sejam estes fundados ou não. “Fiquei várias vezes com a impressão que a decisão do juiz já estava tomada desde o início.”

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