Como um eclipse no percurso lunar...

Valerão a pena todos os esforços que possamos fazer para concretizar o currículo em competências mobilizáveis na vida real pelos nossos alunos.

Há momentos no percurso escolar do ensino básico, com os exames a ganharem posição de ribalta na educação, em que é frutuoso, se não urgente, observar o Português e a Matemática, sob um ponto de vista abrangente, naquilo em que convergem ou naquilo em que aparentemente divergem.

O recente encontro Mais do que ler, escrever e contar, o ensino do Português e da Matemática hoje, que decorreu em 16 de setembro, iniciativa conjunta da Associação de Professores de Português e da Associação de Professores de Matemática, foi um desses momentos, um espaço privilegiado para reflexão. Professores de Português e professores de Matemática, sentados lado a lado, sem barreiras pedagógicas, falaram dos problemas que se vivem e das soluções que se procuram, dos pontos comuns e dos caminhos que se podem percorrer em conjunto. 

A tentativa de articulação entre as duas disciplinas não é novidade: ambas são sistemas de representação da realidade e meios de estruturação do pensamento, de tal modo que o maior ou menor sucesso na aprendizagem de outras disciplinas lhes é frequentemente atribuído. Esta transversalidade curricular é utilizada para justificar o peso e a importância que têm.

Procurar vias de aproximação no trabalho pedagógico da língua materna – ou da língua de escolarização – e da Matemática tem sido uma preocupação em vários países, uma vez que, na escola, os problemas, tanto da Matemática como da vida real, são formulados linguisticamente e, após um tratamento matemático, as conclusões são expressas na língua natural. Assim, se afirmarmos que “não é arriscado andar de avião”, embora pareça não haver qualquer raciocínio matemático nesta proposição, tanto a explicitação do risco quanto a justificação da afirmação feita implicam noções numéricas.

O matemático e filósofo da educação Nílson Machado, na obra Língua Portuguesa e Matemática. Análise de uma impregnação mútua (1998), vai além da simples aproximação entre disciplinas e, tal como o título da obra já o indica, formula o problema nos seguintes termos: "A questão fundamental, na relação entre matemática e português, não é de precedência ou de preponderância, mas a de uma articulação consistente entre ambas" (p. 17), implicando a existência de uma impregnação mútua.

Avançar no sentido desta impregnação pode contribuir para ultrapassar a oposição sociologicamente criada entre sucesso nas “letras” e sucesso nos “números”, o que sugere a existência de dois modos diversos de apreensão da realidade, um deles implicando imaginação, criatividade e intuição e o outro lógica, rigor e medida. A verdade é que atualmente se reconhece que não há exercício profissional na área das humanidades que dispense a matemática, nem carreira científica ou técnica que dispense o uso eficiente da língua portuguesa. Em ambas as áreas, desenvolvem-se as competências de resolução de problemas, de raciocínio, de conhecimento explícito e de comunicação oral e escrita.

Uma das ideias apresentadas e discutidas no encontro foi a dificuldade acrescida de congregar as duas disciplinas no âmbito dos atuais programas oficiais, nos quais os conteúdos se fecham mais sobre si mesmos. Por um lado, temos o domínio de habilidades matemáticas, tais como algoritmos aritméticos ou regras e procedimentos para resolver problemas algébricos ou geométricos, mas em que o exercício do pensar, do descobrir e do expressar é muito limitado. Compreender passou a ser uma palavra banida dos programas e acerca do saber diz-se que o aluno deve conhecer o resultado, mas sem que lhe seja exigida qualquer justificação ou verificação concreta. Por outro, temos um programa de Português que limita o desenvolvimento da leitura a um corpus fechado de textos e orienta a interpretação a partir de generalizações da história literária que já estão definidas no texto do programa. A leitura, em vez de ser um pensar das várias possibilidades significativas do texto em confronto com a subjetividade do leitor, resume-se a um apreender de leituras feitas por outros. A convicção de que o texto literário é o mais complexo, que quem o lê eficientemente lê todos os outros textos sem problemas, desincentiva o trabalho de leitura de outros tipos de texto que tão prementemente requerem o concurso da matemática. No ensino da gramática, dá-se ênfase ao reconhecimento e à classificação de elementos e desvaloriza-se o mais importante: a observação, a explicitação e o domínio de processos morfossintáticos e retóricos na escrita, na leitura e na oralidade, na enunciação textual e na expressão correlativa do tempo e do espaço.

Mesmo com os atuais programas, que contrariam as tendências educacionais na Europa, valerão a pena todos os esforços que possamos fazer para concretizar o currículo em competências mobilizáveis na vida real pelos nossos alunos. Os oradores participantes neste encontro – que contou com mais de 150 professores, lotando o Auditório 2 da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa – apresentaram diversas vias de integração das duas disciplinas: projetos comuns que requerem trabalho em Português, Matemática e noutras disciplinas, como, por exemplo, planear e criar uma horta vertical; usar um mesmo procedimento tipicamente matemático – uma tabela de dupla entrada – numa unidade didática das duas disciplinas; recorrer à narrativa como técnica de ensino, quer como ponto de partida e contextualização dos conteúdos, quer como forma de os concretizar.

Numa perspetiva ainda mais abrangente, no final do encontro foi lançado um projeto de investigação-ação, a desenvolver ao longo de três anos, que incidirá sobre a transversalidade do Português e da Matemática como metodologia de trabalho em sala de aula. Iniciar-se-á no primeiro ciclo, para se alargar, nos anos subsequentes, aos restantes ciclos do ensino básico.

Presidente da Associação de Professores de Matemática

Presidente da Associação de Professores de Português

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