“Como mães temos muito poder, mas não podemos abusar dele”

Em casa dos Correia há um entra e sai. Com 12 filhos e 17 netos, Luísa tem mão de ferro. Cachupa é a ementa de hoje, um prato que dá força e faz a alma avançar. Fecha a série Uma família à mesa.

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Nas paredes de casa de Maria Luísa Correia espalham-se fotografias dos filhos e dos netos, mas são tantos que perdemos a conta aos nomes e idades. Aos 63 anos, esta mulher nascida em Luanda, filha de cabo-verdianos, portuguesa, mãe de 12 filhos e avó de 17 netos. As filhas que ainda moram com ela, Cátia e Paula, recebem-nos ainda nas escadas do apartamento no Casal da Mira (Amadora). Aqui é um entra e sai todo o dia e por isso a porta de casa vai estando aberta.

À entrada há uma mesa com vários santos em porcelana. Do lado esquerdo fica a cozinha onde um grande panelão de cachupa está a ser cozinhado desde as 9h30. Luísa mexe com a colher de pau e vai mostrando: “É milho, feijão catarino, feijão pedra, abóbora, couve, cenoura, mandioca, batata-doce, carne – galinha, porco, vaca, chouriço de carne e chouriço de sangue”.

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Esta é uma cachupa feita a várias mãos. Ainda Luísa estava a caminho de casa, vinda do trabalho nas limpezas que começa de madrugada, Cátia já estava a tirar as carnes do frigorífico e Paula a pôr os feijões na água. Luísa aprendeu a fazer cachupa com a mãe, as filhas aprendem a fazer cachupa com ela. No final, Paula irá juntar um refogado com cebola, alho e azeite, para lhe dar o toque. Mas a mão é de Luísa, e isso é a garantia de que fica com aquele sabor. E se fica, pensamos depois de a provar. “Os cabo-verdianos são activos, comem só comida de força”, diz Luísa. E a cachupa é “mais resistente, não dá tanta fome”, acrescenta Paula, 33 anos. Cátia, 28: “Somos portugueses por ter nascido cá, somos africanos pela nossa cultura. Às vezes somos portugueses, ao mesmo tempo somos de lá.”

É dia de semana, uma terça-feira de Agosto, chegam filhos e netos. É normal reunirem-se ao fim-de-semana, mas de segunda a sexta-feira também. Há quem viva noutro apartamento mas vá a casa da mãe todos os dias. O almoço começa quando está pronto: quem está, está, quem não está que coma depois.

Às vezes juntam-se todos, por exemplo, quando alguém faz anos – o que acontece todos os meses nesta família com umas 30 pessoas em que os filhos têm dos 39 aos 22 anos (o mais velho, que teria hoje 40, morreu vítima de cancro aos 25 anos).

Descobriram um lugar ao ar livre perto de casa onde fazem churrascos. Luísa gosta de ter a casa cheia: “Quando ponho a mesa sento-me ali e fico a ver. Até me dá vontade de chorar quando se juntam todos”, diz, comovida.

Uns jogam às cartas e às damas. Outros vão fazendo experiências de culinária: Cátia e Paula inventam receitas. Assim passam as tardes depois do almoço. Entre eles, os irmãos e a mãe falam crioulo. Mas com os netos mais novos, adolescentes e crianças, usam o português, porque depois na escola “começam a trocar as coisas e não é bom”.

Luísa está em Portugal desde 1977. Dos 12 filhos, dois nasceram em Luanda, uma em Cabo Verde e nove em Portugal. O marido está na Suíça a trabalhar, vem uma vez por ano. Cátia, Tiago (o mais novo, 22 anos), o neto Filipe, 12 anos, Victor Bruno, 24, vivem com ela. Vítor Hugo vai lá todos os dias.

Antes de se mudarem para o Casal da Mira há uns nove anos, viviam na Pontinha. O bairro social tem gente de várias origens - cabo-verdianos, portugueses, brasileiros, guineenses, angolanos, gente “de todas as raças” e “ainda bem” porque “meter as pessoas separadas é racismo”, comenta.

Não há um café ou um supermercado, e faz-lhe falta. De tarde, os miúdos andam pela rua. E foi para evitar que as crianças do bairro ficassem sem nada para fazer durante as férias que Cátia decidiu desenvolver actividades de tempos livres. “Eu e mais três amigos, conversa vai, conversa vem, chegámos à conclusão que as crianças deviam estar ocupadas. Então começámos à procura de entidades no bairro que nos ajudassem com a nossa ideia: em todas as interrupções lectivas queremos abranger 30 crianças e fazer actividades diferentes como ensinar línguas (inglês, francês, alemão, italiano), desportos, proporcionar algo diferente.” Ao todo, já trabalharam com quase 200 crianças e hoje são 14 monitores.

Cátia é a filha número nove que chegou a querer seguir Engenharia Mecânica mas cursou Educação Social sem ter terminado o último ano do curso – estudava numa instituição privada, tinha que pagar quase 400 euros de mensalidade, os pais e a irmã iam ajudando mas o dinheiro depois não chegou. Está desempregada agora, mas esteve a trabalhar num parque temático para famílias.

Participa ainda num grupo de teatro do oprimido, uma técnica desenvolvida pelo brasileiro Augusto Boal. A ideia é pôr espectadores e actores a falar uns com os outros e trazer para o debate temas como desigualdade de género ou a gravidez precoce. “Falamos de géneros, dos rapazes não fazerem nada e das raparigas terem que trabalhar mais em casa. Falamos da sexualidade, de raparigas que ficam grávidas e de os pais as porem fora de casa. O objectivo é fazer perceber os jovens que ter filhos cedo vai impedi-los de fazer várias coisas. Se aos 16 anos já têm filhos vão ser obrigados a trabalhar. Têm sempre alguém à espera. A ideia é que ao fazer a peça os jovens mudem um bocadinho.”

Luísa tem dois empregos, onde faz limpezas: o primeiro turno é das 5h30 às 8h30, fica nas Torres de Lisboa; o segundo começa às 17h30 na Baixa-Chiado. Acorda às 4h, deita-se pelas 22h30-23h , às vezes às 24h. “Quem muito dorme pouco aprende”, diz a rir esta mulher que sabe de cor muitos provérbios.

Lá em casa, sejam rapazes ou raparigas, todos ajudam, diz. “Quem come tem que ajudar, limpar, fazer a cama. E também os levo lá para a horta” – onde tem batatas, couves, mandioca, cana-de-açúcar, etc. Luísa não estudou, mas incentivou os filhos a seguirem os estudos durante o máximo tempo possível “para serem alguém de manhã”, “não serem como eu, que não sei nada”. “Na minha maturidade eu sei muitas coisas, mas ler e escrever não.”

Além de Cátia, só Vítor Hugo seguiu os estudos, e não terminou arquitectura, também por falta de dinheiro. O seu percurso seria, porém, diferente: tornou-se jogador profissional de futsal no Benfica. Cátia quer voltar ao curso de Educação Social, que apesar de tudo já mudou “muita coisa” na sua vida. “Posso estar com pessoas em cargos superiores e percebo o tema de conversa. Às vezes há pessoas que não estudaram que, se calhar, ficam mais constrangidas. O facto de estudar permitiu-me estar inserida na sociedade”.

O ausente-presente
A meio da manhã, chega Elsa, 37 anos, a irmã que quer emigrar para França em breve com o marido. Sentada no sofá, ouve Cátia enquanto ela conta as suas actividades no teatro. Sorri. E comenta que se lembra-se do tempo em que ela estava na Casa Pia – todos os filhos estudaram nesta instituição, vários dos netos também, sem nunca serem internos. Elsa vive no bairro com duas filhas, uma com 11 e outra com 17 anos. Acabou o curso de panificação, fez estágio. Paula faz limpezas.

Vítor Hugo é uma figura presente e ausente na sala. A sua imagem está duplicada em dois cartazes gigantes, ele vestido com o equipamento do Benfica. Diz Cátia que ele é o intelectual da família, pela forma como se expressa. “Não é bem o líder mas quando fala, fala”, diz. A mãe explica: “Ele é o único que diz que uma coisa é assim e fica assim. O mais velho e o mais novo respeitam a palavra dele, e as pessoas da rua também.”

Cátia olha para o irmão como um exemplo a seguir, pela forma de estar, por exemplo. Se há uma discussão, ele chega e diz que não é bem assim. Os irmãos param, e escutam. “É brincalhão”, diz a mãe, “mas não fala muito”, só que “o que fala, dá para muito”. Saiu ao pai. “Eu não: falo tudo. Mas sou limpa, não guardo nada aqui”, e aponta para o peito. Paula descreve-o como o mais calmo. Aquele que está de fora, a ver as coisas de outra maneira, o que “pensa muito mais rápido e vê a lógica, onde está a razão”. Mas a paz quem a dá à família “é ela”, diz Luísa a apontar para Cátia.

Regra básica da educação, segundo Luísa: quando os filhos não têm razão, Luísa diz-lhes. Porque há muitas mães que defendem os filhos tendo eles ou não razão – e depois no dia seguinte eles fazem pior, analisa. “Até morrermos os filhos são sempre pequeninos, tenham 50 ou 60 anos.”

Não discutir com os filhos, nem com as outras mães na rua, é outro guia que Luísa faz questão de seguir. Cátia completa que a mãe sempre lhe disse que se queria uma coisa tinha de trabalhar, “nunca alimentou vícios”. “Mesmo tendo esta idade, às vezes trazemos coisas de um amigo e ela obriga-nos a levar: ou compras, ou não trazes para casa.”

Não roubar, não mentir, não ficar com as coisas dos outros – são três coisas que Cátia se lembra de ouvir da mãe. “Respeito, dignidade”, acrescenta Luísa. “Uma pessoa digna é bonito, é bom, é bem falada”.

Elsa explica que criou os filhos como a mãe a criou. “Se me aparece com uma caneta eu quero saber de onde veio.”

Evitar a rua
Em casa sempre foram incentivados a praticar um desporto ou desenvolver uma actividade como música para chegarem a casa mais tarde e não terem de conviver com os outros miúdos na rua. Também iam à catequese. Luísa, que tem um grupo de batuque, queria evitar que os filhos tivessem problemas. “Lá por sermos mães não podemos fazer aos nossos filhos muitas coisas, nem perante Deus, nem perante o público. Porque como mães temos muito poder, mas não podemos abusar dele. Não podemos fazer o que quisermos só porque eles não nos vão bater por serem nossos filhos. Também têm que ter liberdade.”

O segredo de manter a família junta é a cumplicidade e a simplicidade, dizem à mesa. Com um prato de cachupa em frente, e um copo de vinho tinto, Luísa discorre ainda sobre a importância do trabalho. “Preguiça não é bom. Trabalhar é honra de pessoa, quem não trabalha não tem palavra. Devia filmar as minhas mãos, olha aqui: tenho calos, calos de enxada, de trabalhar. Isto é mão de uma senhora? Não é. Mas tenho muita honra do meu trabalho.”

Às vezes Luísa sente-se olhada como estrangeira em Portugal. Paula e Cátia dizem sentir-se tratadas de maneira diferente por serem de origem africana. Ouviram várias vezes: “’Vai para a tua terra, vieram de África, não sei quê’. Parecendo que não, isso machuca. Sabemos que nascemos cá e temos os mesmos direitos – e há muitos brancos que nasceram em África. Mas vamos a alguma instituição e a primeira reacção é: ‘trouxe o seu cartão de residência ou o seu passaporte?’ Partem logo do princípio que não somos portugueses.” Cátia completa: “Somos portugueses para fazer número ou somos portugueses de documento?” Aos filhos Luísa aconselha a responder às situações de discriminação quando é preciso.

Ir e vir
Há quase um ano que Vítor Hugo, 30 anos, está parado. Teve uma lesão, e anda na fisioterapia. Chega quando já todos almoçaram. As fotografias por trás dele, agora sentado à mesa, reproduzem a fisionomia tal e qual. Discorda sobre a opinião geral da família, de que é o líder. “Somos todos iguais, falamos todos igual. Há uns que falam melhor com todos. Esta é advogada da família”, diz, a apontar para Cátia. A mãe acrescenta: “É psicóloga também”. E o cunhado: “Sabe dar conselhos”. Já Vítor Hugo “é o juiz”, continua a mãe. “O meu papel é simples”, comenta ele, num tom de voz calmo. “Falar aquilo que é o correcto e não aquilo que é mais fácil, aquilo que se deve fazer, mesmo que custe”.

À sua frente, Vítor Hugo, o ausente agora presente, tem o prato de cachupa. Na cozinha, ficou um panelão ainda cheio. Desde pequeno que se lembra de comer cachupa, “se não comer parece que a alma não avança”.

Na hora da refeição, toda a gente aparece, descreve. Juntar a família à mesa é “um momento único”. Há muita brincadeira e risada. Convívio. “Vive-se o momento, e depois acaba e cada um vai para seu lado.” O segredo de manter a família também é esse: “Sermos nós mesmos. E estarmos presentes.”

Receita

Cachupa

(quantidades a olho, panelão para mais de duas dezenas)

Milho, feijão catarino, feijão pedra, abóbora, couve, cenoura, mandioca, batata-doce, carne. Coloca-se um panelão com água onde se põe milho, feijão catarino, feijão pedra, alho, folha de louro, um bocadinho de azeite, chouriço de carne e chouriço de sangue, caldos de carne. Tempera-se à parte carne (galinha, porco, vaca) com colorau, refuga-se e estufa-se com alho, cebola, louro e azeite. Junta-se abóbora, couve, cenoura. A batata e a mandioca juntam-se quando está quase cozido. No final, adiciona-se refogado de cebola e alho.

 

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