Como foi possível isto acontecer?

As famílias homoparentais existem, não são uma possibilidade meramente teórica com a qual se possa ou não concordar.

"Como foi possível isto acontecer?" Foi a interrogação incrédula que recentemente ouvi alguém fazer à saída do filme O Jogo da Imitação, sobre o génio matemático Alan Turing, perseguido na Inglaterra dos anos 50 por ser homossexual. No dia em que mais uma vez se discute no Parlamento português a parentalidade exercida por casais do mesmo sexo, importa refletir um pouco sobre o preconceito, nomeadamente aquele que tem caracterizado alguma argumentação contra as famílias formadas por lésbicas e gays.

Embora se continuem a verificar situações explícitas de discriminação, crimes de ódio e mesmo punição da homossexualidade com a pena de morte em alguns países, o preconceito contra as pessoas LGBT tornou-se mais camuflado (o mesmo aconteceu com o preconceito em função da “raça”/etnia ou mesmo do género). Ou seja, a homofobia tem assumido formas menos evidentes para se “adaptar” a contextos sociais regidos por uma norma social pretensamente igualitária. Assim, expressões flagrantes de homofobia tendem, nas sociedades ditas desenvolvidas, a ser consideradas de mau gosto e inconvenientes. Perante uma norma social que tende a impedir a expressão de opiniões abertamente negativas sobre assuntos relacionados com a homossexualidade, é previsível que grande parte das objeções acerca desta orientação se exprima hoje de forma mais indireta, por exemplo no que diz respeito à homoparentalidade. Destaco, a este propósito, o argumento de que as crianças virão a ser discriminadas. Recusar a coadoção ou a possibilidade de adoção por casais do mesmo sexo, por causa dos possíveis efeitos da discriminação social nas crianças implica não só que a sociedade aceite a sua impotência na luta contra a discriminação como sugere às pessoas não heterossexuais que estas prescindam do seu direito de constituir família. Utilizar o mesmo argumento relativamente à "raça"/etnia (por exemplo, os membros de grupos étnicos discriminados não deveriam ter filhos ou adotar crianças por causa do racismo) ilustra o carácter perigoso do argumento baseado no bullying homofóbico exercido sobre as crianças educadas em lares homoparentais. Por outro lado, as famílias homoparentais existem, não são uma possibilidade meramente teórica com a qual se possa ou não concordar. A preocupação com a discriminação deve, assim, ser um motor de mudança e de proteção das crianças que têm mães ou pais LGBT ou daquelas que podem vir a beneficiar de uma família constituída por pessoas do mesmo sexo.

Apesar de 40 anos de investigação psicológica terem evidenciado, sobretudo, semelhanças entre a homo e a heteroparentalidade e de este consenso transparecer nas tomadas de posição de organismos profissionais como a APA (Associação Americana de Psicologia) ou da própria Ordem dos Psicólogos Portugueses, constata-se que o preconceito relativamente à homoparentalidade subsiste. Isto mesmo sugerem os dados recolhidos no âmbito de uma investigação por nós levada a cabo: o preconceito contra lésbicas e gays aparece claramente associado ao preconceito contra a homoparentalidade. Portanto, não é verdade o que tantas vezes ouvimos dizer “nada tenho contra os homossexuais” (lá está o efeito da norma antipreconceito), logo seguido de “mas a parentalidade é outra coisa”.

Daqui a 50 anos, também os netos das atuais mães e pais LGBT dirão a propósito da forma como as leis trataram os seus avós e os seus pais: “Como foi possível isto acontecer?”.

Doutorado em Psicologia pela Universidade do Porto. O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico.

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