Como Adélia juntou “as migalhas” para garantir o curso à filha

Quase 40% das famílias monoparentais são pobres. E quase dois em cada dez trabalhadores não conseguem ter rendimentos acima do limiar de pobreza. Esta é a história de Adélia e Ana Baptista.

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Ana licenciou-se com boas notas e foi para a Alemanha Raquel Esperança

Chove no Rossio, em Lisboa. Adélia Baptista acaba de chegar do trabalho. Todos os dias vai a pé e regressa a pé para casa. São 25 minutos para lá, outros 25 para cá. O dinheiro que gastaria por mês com o passe para os transportes dá para pagar a luz em casa, diz. Aos 55 anos está efectiva e ganha o salário mínimo nacional — 550 euros “já com os duodécimos e uma diuturnidade” por trabalhar no mesmo local há cinco anos. É uma mulher magra, de modos delicados, que teve uma “vida muito boa”, mas que a certa altura teve de “começar de novo”. Ela e a filha Ana.

Quando há uns anos vieram para Lisboa, para recomeçar as duas — “sempre as duas” —, e alugaram por 350 euros uma casa perto do Rossio, Adélia, natural de Sintra, olhava para fila dos sem-abrigo que se juntavam à noite ali perto, à espera da carrinha das associações de apoio a carenciados que distribuem sopa e sanduíches. E sentia-se “tentada” a juntar-se à fila também. É que, por vezes, simplesmente não tinha dinheiro para comer. Para pagar um bilhete de metro. Para ir à farmácia se estava doente. Foram “noites sem dormir”. Há muitas ideias erradas sobre a pobreza, explicará esta senhora. [Com os anos, tem visto as filas à porta de casa, para a sopa e para as sanduíches, engrossarem. Já não são só sem-abrigo, garante.]

Para trás tinha ficado o fim de um casamento de 20 anos com um gerente bancário e sua “a vida muito boa” que, contudo, não lhe deixara nada. Conta que só ao fim de três anos de separação o pai de Ana passou a contribuir com 50 euros por mês.

Arranjar trabalho, na Associação Protectora de Diabéticos de Portugal (onde faz várias coisas: limpezas, servir almoços, acompanhar os doentes à porta...), com a idade que tinha naqueles dias difíceis, 50 anos, “foi um milagre”, conta hoje, mais de cinco anos depois. ["Às vezes, quando se fala de pobreza, “as pessoas dizem: ‘Vão trabalhar!!’ Mas onde? Dificilmente se é chamado aos 50 anos. Se eu não tivesse conseguido... olhe, possivelmente tinha-me suicidado. Quando você quer comer e não tem, quando as portas todas se fecham, você vê tudo negro, entra numa grande desorientação. Quantas pessoas se suicidarão, mas isso não entra nas estatísticas?”]

O ordenado mínimo (que continua a receber) não dava, contudo, para o passo seguinte: depois do 12.º ano, a filha queria continuar a estudar. E esse era também o grande sonho de Adélia. “Tenho o 9.º ano. Portanto, isto é uma coisa muito especial para mim. Sei que hoje quem tem estudos é quem tem hipótese de dar o salto.”

Alguém lhes recomendou a Cruz Vermelha Portuguesa (CVP). E durante três anos, até ao início do Verão passado, Adélia e a filha juntavam ao que a mãe ganhava os alimentos que iam buscar uma vez por mês à Cruz Vermelha e um subsídio, também da Cruz Vermelha, destinado especificamente a ajudar a pagar a propina do curso superior de Design que Ana, depois de ter estado dois anos sem estudar, trabalhando aqui e ali, passou a frequentar.

“A mensalidade da escola era 350 euros mensais, mais uma média de 50 em material escolar, pincéis, livros, tintas, papel. Para além disso, a Ana tinha uma bolsa” do Estado, que começou por ser de 120 euros e depois passou para quase 200. Com os apoios, estavam obrigadas, ainda assim, a juntar algum para o curso. “Juntávamos as migalhas todas que faltavam”, conta Adélia sempre a sorrir. “Nunca falhámos! Nos dois primeiros anos, houve alturas em que tive três trabalhos. Para além da associação, trabalhava na casa de uma senhora aos fins-de-semana e numa loja. Mas a loja fechou. E a senhora, que tinha uma vida espectacular, muito idêntica à que eu tinha antigamente, separou-se e já não pôde mais ter empregada.”

Mas agora o que importa é isto: a filha licenciou-se com “18 valores”. O apoio da CVP acabou no início do Verão (o que não quer dizer que não possa haver uma ajuda alimentar pontual). Adélia está imensamente agradecida. “Senti uma mão muito amiga na Cruz Vermelha.” Foi lá mostrar o diploma da filha quando ela acabou.

De acordo com o Instituto Nacional de Estatística, 10,7% dos trabalhadores tinham em 2013 rendimentos abaixo do limiar de pobreza (o equivalente a 411 euros mensais). E o mesmo acontecia com 38,4% das famílias monoparentais (mais 5,3 pontos percentuais do que em 2012). Adélia e Ana não são casos assim tão raros.

E como está Ana? É nesta parte que os olhos de Adélia entristecem. Há pouco mais de um mês, a filha, agora com 23 anos, emigrou para a Alemanha para tentar encontrar trabalho. “Ela sente-se expulsa do país.”

Depois de pagar a renda da casa, luz, água, telefone, Adélia fica com 25 euros por semana para tudo o resto, incluindo alimentação. “Passar de cavalo para burro é mais difícil do que passar de burro para cavalo. Mas a gente habitua-se.” Sabe de cor os truques: há anos que eliminou a carne, porque é cara. “Um pacote de soja, de 2€, dá para milhentas vezes. Ainda hoje vou fazer soja, com tomate, cebola, feijão, fica óptimo...”

E o futuro? “Ai, ai, ai. Já fiz as contas e disse à minha filha: ‘No ano em que a mãe se reformar, a renda da casa vai ser superior à minha reforma.’ E a minha filha diz: ‘Não te preocupes, mãe. Nessa altura já hei-de estar a ganhar bem e não te vou faltar com nada. Só não quero é que morras comigo longe de ti.’”

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