Comer o mundo. E perceber porquê

A jornalista britânica Mina Holland fez um livro que nos transporta para 39 regiões do mundo (incluindo Portugal) e explica porque é que em cada uma se comem coisas diferentes, cozinhadas de mil formas diferentes. Um Atlas que é “uma celebração da viagem através da comida”

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Quando era pequena, na Grã-Bretanha, Mina Holland comia “um soberbo kedgeree” — bagos de arroz entremeados com cebola frita, ovo cozido e eglefim fumado — feito pela avó, convencida de que era uma especialidade britânica e ignorando que se tratava de um prato originário da Índia.

Foi também na infância, teria Mina uns nove anos, que experimentou pela primeira vez borscht, a sopa de beterraba muito apreciada nos países do Leste e que a avó da sua amiga Emilia Brunicki preparava. “Lembro-me de caminhar pelo corredor rústico da casa dela, no Sul de Londres, onde o aroma das beterrabas, do caldo de carne e de algo bom a ser cozinhado em lume branco me envolvia”, recorda no livro O Atlas Gastronómico — Uma Viagem ao Mundo em 39 Cozinhas Internacionais, que acaba de ser editado em Portugal pela Lua de Papel. 

O livro está cheio destas memórias de infância dos sabores com os quais Mina se cruzava frequentemente numa Londres em que era fácil encontrar (e misturar) cozinhas de muitas partes do mundo, ou em sítios mais exóticos como Pattaya, o empreendimento turístico de praias na Tailândia para onde o avô foi viver quando se reformou e onde o arroz reinava.

É muitas vezes a partir dessas memórias que a viagem começa. E a viagem, para esta jornalista britânica, editora do suplemento de gastronomia e vinhos do diário The Guardian, passa pelas tais 39 cozinhas internacionais, que podem ser de uma região ou de um país. O Altas Gastronómico — vencedor da edição de 2015 de Melhor Livro de Viagens Culinário atribuído pela Gourmand World Cookbook Awards — explica as razões pelas quais num país se come de determinada maneira ao mesmo tempo que mostra como ingredientes e sabores se cruzam pelo mundo, às vezes de forma inesperada.

Veja-se o Irão, uma das cozinhas mais fascinantes analisadas no livro. Mina começa por notar que, ao contrário do cinema ou da música, que são chamados “iranianos”, quando se fala de gastronomia, esta é “persa”. Há uma razão: “A gastronomia persa tem-se mantido praticamente inalterada ao longo dos séculos” em parte devido “à recente história iraniana de isolamento político e cultural do Ocidente”.

Mina acha simplista a separação das cozinhas do Médio Oriente de acordo com a essência que escolhem para a água: água de rosas no Irão e na Turquia, flor de laranjeira no Levante e em Marrocos. E defende que “devido às especiarias que usa (feno-grego, cominhos, coentros) e por depender tanto do arroz, a comida persa alinha-se mais com as gastronomias do Norte da Índia e do Paquistão do que com as do Médio Oriente e do Norte de África”.

A seguir somos transportados para um universo que podemos apenas imaginar, quando Mina descreve a “arte na combinação de sabores da comida persa”, que resulta em pratos como beringela com nozes, coroada com coalho espesso; ginjas com borrego; frango com laranja e açafrão; espinafres, iogurte e passas. No final desse capítulo, bem como em todos os outros, há uma lista de compras dos ingredientes básicos para fazermos este tipo de cozinha em casa e duas ou três receitas (no caso do Irão, frango com uva-espim, iogurte e casca de laranja; borrego com ervilhas-de-quebrar, lima seca e beringela; e o fantástico arroz chelow).

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cortesia Elena Heatherwick

É neste equilíbrio entre histórias pessoais, factos históricos e sabores que atravessamos o mundo, numa viagem interrompida aqui e ali por mapas que comparam como diferentes países fazem a base de um refogado ou mostram como viajou o açúcar ou como se distribuem as especiarias — rosmaninho, louro, alfazema e funcho no Mediterrâneo, açafrão no Irão, cravinho na Indonésia, gengibre, erva-príncipe, lima kaffir e citrinos no Sul da Ásia, açúcar, cardamono e curcuma na Índia.

Mina explica à Revista 2 por email que escreveu “um livro profundamente pessoal”. O Atlas “reflecte os aspectos da comida que me interessam, os sítios onde estive, as refeições que comi e a forma como combina comida, viagens e literatura é um reflexo de mim”. Não há imagens. “O livro utiliza uma forma antiquada de ensinar o leitor a cozinhar e transmitir-lhe informações sobre comida”, resume. “Queria que as pessoas sentissem que o podiam usar na cozinha mas também ler na cama ou levar para as férias. E que fosse um passaporte para aventuras na cozinha e uma celebração da viagem através da comida.”

Esta passagem por grande parte do mundo inclui Portugal, que Mina conhece mas não de forma tão profunda como outros países ou regiões onde viveu, da Espanha à Califórnia e a algumas partes da América Latina. “Nesses, partia da minha experiência e das relações com pessoas locais; nos outros, falava com conhecedores em Londres, de chefs a pessoas que cozinham em casa.” No caso de Portugal, a fonte principal foi Nuno Mendes, o português que tem conquistado os londrinos com os seus restaurantes — o mais recente dos quais é a Taberna do Mercado — e que tem também uma coluna sobre comida no The Guardian. O capítulo inicia-se com uma citação de Viagem a Portugal de José Saramago a lembrar-nos que nenhuma viagem é a mesma duas vezes e a abrir caminho às memórias de Nuno Mendes (que teve um restaurante chamado Viajante) de uma açorda alentejana e da avó Maria Luísa a trabalhar na sua cozinha no Alentejo. Mina descobre aí uma “comida comunal, enraizada no espírito de partilha”, que lhe faz lembrar países que foram colónias portuguesas, com “as paneladas brasileiras”. Acha particularmente fascinante a carne em vinha d’alhos, inspiração do vindaloo goês.

Outra coisa que lhe desperta a atenção é, no Alentejo e Algarve, pratos que misturam o marisco com a carne e, nos Açores, “a técnica invulgar de cozinhar demoradamente no solo”, um processo em que “o calor vulcânico mescla os aromas da carne, do sangue, do alho, do chouriço, do toucinho e da couve, no poderoso cozido das Furnas”. Ainda falando de cruzamentos e influências, “os sabores de muitos pudins portugueses não ficariam deslocados no Norte de África ou no Médio Oriente, com as suas combinações doces de frutos secos, citrinos e outras frutas”.

No final, Mina escreve que “enquanto outras culinárias da Europa ocidental como a francesa e a espanhola, são afamadas tanto pela haute cuisine como pela cozinha caseira, aqui a ‘comida campesina’ ainda ocupa uma posição de destaque” com guisados, sopas e pratos à base de pão. O que, conclui, a torna fácil de reproduzir em casa. E deixa duas receitas: açorda de bacalhau à alentejana e toucinho do céu.

Perguntamos-lhe se, nos vários países que conhece, as pessoas têm consciência dos tais cruzamentos e influências de ingredientes, pratos, receitas. “Julgo que não”, responde, “embora não queira partir do princípio de que as pessoas são ignorantes relativamente às influências que existem nas suas culinárias. Estou convencida de que a maioria dos britânicos não imagina que dois ingredientes que usam regularmente, batatas e tomates, são originários da América Latina, embora não se possa aplicar isto a toda a gente”.

E estarão estas cozinhas em risco de desaparecer? “Na maioria dos casos, há hoje uma tradição de escrever receitas que não acontecia no passado. Por isso acredito que, mesmo que mude a forma como alguns ingredientes regionais são usados e os pratos regionais são preparados, conseguiremos preservá-los.”

Continuará, no entanto, a haver transformações como sempre houve na história da culinária. “O aumento da imigração significa que as cozinhas regionais vão inevitavelmente alterar-se e ser reinterpretadas. Não devemos lamentar isso, desde que não percamos a tradição de vista. Pelo contrário, acredito que é algo que devemos celebrar. As mudanças que acompanham o movimento das pessoas fazem parte da natureza da cozinha e isso é profundamente excitante.”

Precisamente porque as comidas viajam, foi quando era estudante na Universidade de Berkeley, na Califórnia, que Mina entrou no mundo dos restaurantes — e, curiosamente, foi aí que deixou de ser vegetariana e decidiu voltar a comer carne (“quem consegue resistir aos pratos persas com galinha?”, pergunta). Descobriu os vinhos do Novo Mundo (o livro tem também uma parte dedicada às castas mundiais) e explorou cozinhas como a mexicana ou a japonesa.

Mais tarde, viu o filme Julie & Julia — no qual uma jovem admiradora faz um blogue relatando os seus esforços para cozinhar as receitas do livro de Julia Child — e resolveu fazer mais ou menos o mesmo: um blogue no qual falava das tentativas para transformar em realidade as receitas do romance que estava a ler. “O blogue chamava-se Mawkish Pulp, a partir de uma expressão de James Joyce, e acabou por se transformar num restaurante pop-up chamado The Novel Diner”, no qual as refeições eram inspiradas em livros como American Psycho ou O Grande Gatsby, com ambiente e roupas a condizer.

Foi depois dessas experiências que Mina desistiu da carreira em publicidade e começou a escrever sobre comida. A ideia de fazer o Atlas “comestível” surgiu nesse período em que, desempregada, escrevia de graça para várias publicações. “Não tinha dinheiro para comprar todos os livros de cozinha com que sonhava, por isso pensei em fazer um que reunisse informação sobre várias cozinhas.”

O resultado “é uma carta de amor ao turismo gastronómico”, na qual aprendemos, por exemplo que a cidade de Lucknow, na Índia, anteriormente chamava-se Awadh. “O termo awadhi continua a ser usado para referir a gastronomia local, que resulta de três factores. Em primeiro lugar, a adopção dos tandoors do Norte da Índia e dos grelhados do Punjab e de Caxemira; em segundo, os efeitos duradouros dos colonizadores mongóis dos séculos XVI e XVII, os imperadores persas que fizeram de Lucknow a capital; e, por fim, a influência da cidade santa de Benares (ou Varanasi), a pouco mais de 300 kms, que alberga uns 50 mil hindus brâmanes vegetarianos e onde, historicamente, os matadouros eram ilegais.”

E isto é só o princípio de uma história fascinante sobre o que se come naquela zona do mundo e porquê. Uma história que esteve sempre perto de Mina mesmo quando ela não o sabia: foi na Índia que nasceu a avó paterna, que cozinhava o tal “soberbo kedgeree”. É por isso que, diz, às vezes não é preciso viajar muito longe, nem sequer ter passaporte.

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