Combater o desperdício alimentar fazendo dos restos uma refeição

Não me lixes é o nome de uma nova campanha nascida no Porto para reduzir o desperdício nos restaurantes, supermercados e lares dos portugueses.

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São cerca de 375 mil os portugueses que lidam com a fome diariamente Miguel Manso (arquivo)

Os números do Instituto Nacional de Estatística e do Banco Alimentar contra a Fome traçam um cenário preocupante quanto à fome em Portugal. São cerca de 375 mil os portugueses que lidam com a fome diariamente, entre os quais 120 mil crianças. Números que António Souza-Cardoso, presidente da Associação para Promoção da Gastronomia, Vinhos, Produtos Regionais e Biodiversidade (AGAVI), destaca terem aumentado desde 2012. Ao mesmo tempo, cerca de 50 mil refeições são deitadas ao lixo por dia. Por ano, cada português desperdiça 132 quilos de alimentos, segundo os dados recolhidos pela AGAVI.

Foi com a consciência do “peso destes dados” que o presidente da AGAVI empreendeu a campanha Não me lixes, contra o desperdício alimentar. O objectivo? Desperdício zero de alimentos. O lançamento da iniciativa juntou, esta quarta-feira, no restaurante do chefe José Cordeiro, no Porto, várias entidades parceiras, entre as quais a Santa Casa da Misericórdia do Porto, a Associação Empresarial de Portugal, a LIPOR e a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal.

Não me lixes pretende ser uma chamada “à consciência de cada um”. “Mesmo em Portugal, há muita gente a passar fome e nós temos que ter consciência disso”, salientou José Cordeiro. Uma campanha que, para o chefe, deve começar por decisão de cada consumidor e não pela via das regras. “Se eu tiver noção de que o desperdício não deve existir, quando pego num tomate não o consigo deitar ao lixo. Devemos ter na cabeça que isto podia dar para alimentar uma criança durante meio-dia”, alertou o chefe.

Com o objectivo de “chamar a atenção para que é possível comer bem de outra maneira”, o chefe Cordeiro preparou um almoço com oito pequenos pratos feitos a partir dos restos que normalmente são desperdiçados na cozinha. As cascas de batata foram fritas e servidas com maionese e molho que sobrara da francesinha da véspera. As aparas de peixe deram origem ao paté das entradas e mesmo os talos de grelos fizeram o puré a acompanhar com badanas de bacalhau.

A campanha quer mudar a maneira como comemos e como olhamos para os alimentos. António Souza-Cardoso apoia-se na história das tripas à moda do Porto para mostrar que nem tudo o que deitamos fora é lixo. “O Porto mostrou empreendedorismo e originalidade ao trocar a carne pelas tripas, que as pessoas deitavam fora, e com fazer delas o maior ícone da gastronomia portuense”, justificou o presidente da AGAVI.

Perante números “desastrosos”, a campanha é ambiciosa: “O objectivo principal é acabar mesmo com a fome em Portugal. Enquanto existirem 375 mil pessoas que passam fome diariamente, a campanha não pode acabar”, destacou Souza-Cardoso.

Com início no Porto, a campanha pretende depois chegar a todo o país, com iniciativas em escolas, restaurantes e hipermercados. Sobre o lema O que sobra é o que falta, a organização quer também que os restaurantes que se associem à iniciativa ofereçam refeições a quem precisa. Para já, os projectos ainda não saíram do papel e esperam o fim dos contactos com as associações para poderem avançar com a sensibilização em diferentes formatos, desde aplicações a livros e cadernos informativos.

Onde se desperdiça

A questão não é a existência de alimento, mas como este é distribuído pelas necessidades das populações. À custa da compra por impulso, um terço destes desperdícios são feitos em casa. A falta de atenção com as datas de validades e a falta de cuidado com a forma como são armazenados os alimentos contribui para que muitos sejam deitados ao lixo antes de poderem chegar aos pratos.

“Não se come, fica no frigorífico, estraga-se, vai para o lixo” — é este o caminho que muitos alimentos percorrem nas casas dos portugueses, alerta o chefe. Esta é, na visão de José Cordeiro, uma luta que começa em casa.

O chefe adianta que o desperdício nos restaurantes portugueses depende do nível de gestão. Em ambientes familiares, o restaurante tem tendência a gerar menos lixo orgânico e a poupar mais. As grandes áreas de restauração, supermercados e cantinas são, por outro lado, a maior fonte de alimentos desperdiçados: “Nós temos um desperdício brutal de alimentos nas grandes superfícies. Se forem ao final de um dia à parte de trás de um hipermercado ou grande restaurante, vocês deitam as mãos à cabeça.”

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