Com os pés ainda no Século XX

Os casos têm dimensão diferente mas ambos implicam situações em que o Estado de Direito é posto em causa.

Há momentos assim. Pensamos em quanto o país mudou, se modernizou, em como estamos a rasgar o século XXI e, de repente, acordamos com os dois pés bem lá atrás, no fundo do século XX. O que leva uma juíza a assumir uma atitude e um discurso claramente discriminatório e sexista num tribunal em que está a ser julgado um caso de violência doméstica? O que leva uma vereadora a contratar para trabalhar consigo na Câmara de Lisboa um filho de um ex-presidente da mesma Câmara Municipal? O que leva pessoas que assumem cargos de responsabilidade máxima no aparelho do Estado, que deviam ter uma conduta de referência dentro das regras e das convenções sobre como funciona um Estado de Direito Democrático, que deviam pautar-se por critérios de não discriminação e de não favorecimento na gestão da coisa pública, a comportarem-se como se tais regras não existissem?

Os casos têm dimensão diferente mas ambos implicam situações em que o Estado de Direito é posto em causa, ainda que nenhuma lei tenha sido violada. O primeiro aconteceu num julgamento sobre violência doméstica que envolve duas pessoas muito mediatizadas, um ex-ministro e professor universitário e uma apresentadora de televisão. A juíza encarregada do processo, de quem, aliás, a defesa da alegada vítima já pediu escusa, usou um tratamento discriminatório e sexista. A ele, ao homem acusado de exercer violência física e psicológica sobre a mulher, tratou-o sempre por “professor”, a ela, a mulher alegadamente vítima da violência, tratou-a sempre pelo nome pessoal. Recorreu a um discurso em que foi claro o tratamento de privilégio do homem e desrespeitoso da mulher, já que não é das regras os juízes ou qualquer agente de justiça usarem títulos académicos para interpelar arguidos ou vítimas. E não se trata ninguém dentro de um tribunal apenas pelo nome próprio.

Não contente com essa atitude sexista – e sim, as palavras têm género e expressam aquilo que quem as usa entende sobre a igualdade de género –, segundo o relato feito da sessão do julgamento por Andreia Sanches no PÚBLICO de sábado passado, a juíza decidiu afirmar: “'Causa-me alguma impressão a atitude de algumas mulheres’ vítimas de violência, algumas das quais ‘acabam mortas’. E acrescentou: ‘A senhora procuradora diz que não tem que se sentir censurada. Pois eu censuro-a!’”.

Assim, durante o interrogatório a uma alegada vítima de violência doméstica, uma juíza que supostamente tem de ter formação para julgar o caso, comete um erro grave. Grave não só porque faz um juízo de valor categórico e censório de quem está a interrogar, tomando partido contra ela. Mas grave também porque demonstra uma absoluta e confrangedora insensibilidade e ignorância sobre o que é violência doméstica e o comportamento padrão das vítimas nestes casos. A auto-estigmatização, o silêncio, o medo, o sofrimento, a exclusão, a vergonha que sentem e com que vivem por vezes anos até conseguirem denunciar as barbaridades que sobre elas são cometidas.

O comportamento da juíza é de tal modo irregular que foi já alvo de uma posição da Associação Portuguesa das Mulheres Juristas em que esta organização afirmou “não quer deixar de expressar publicamente a sua preocupação pelo que estas [palavras e atitudes] revelam sobre a persistência de pré-juízos desconformes com o legalmente estipulado sobre o modo de agir com vítimas de violência doméstica”. Além, claro, de estar na base do pedido de recusa da juíza apresentado pela defesa.

Já em relação às contratações na Câmara de Lisboa o caso é também questionável do ponto de vista da igualdade de tratamento num Estado de Direito. E este caso atinge contornos de alegado nepotismo, para lá de todas a falta de transparência de regras que ressalta da forma como foram contratadas seis, de acordo com o relato do caso feito pelo jornalista José António Cerejo no PÚBLICO (16/02/2016). A irregularidade surge mesmo no desrespeito pelas regras laborais: “O contrato revela ainda que no seu primeiro mês de vigência este prestador de serviços receberá 4200 euros, em vez dos 2800 mensais a que terá direito. A justificação deste bónus, que contempla também um dos outros seis contratados, reside no “acumulado de processos que requererá a execução do dobro de horas nesse mês”. O documento, porém, não estabelece qualquer número de horas de trabalho semanais, ou mensais, a que Mário Barroso Soares esteja obrigado.”

Mas a gravidade deste caso é também o facto de ele revelar que não houve na Câmara de Lisboa o mínimo cuidado em salvaguarda a existência de um favorecimento que indicia nepotismo. É que contratar como assessor de uma vereadora um filho de um antigo presidente da mesma Câmara, por mais mérito que tenha e mesmo que o pai, o ex-presidente a autarquia João Soares nunca tenha tido sequer conhecimento do que se passava, dá a imagem pública de favorecimento.

Sugerir correcção
Ler 2 comentários