Cognac, Armagnac e Lourinhac, prova cega de três aguardentes

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A cor é uma boa porta de entrada para avaliar uma aguardente. Pode indicar a sua pureza Miguel Manso

O solo da Lourinhã esconde segredos bem guardados. Como os vestígios da era dos dinossauros ou as uvas que dão origem à única aguardente vínica portuguesa com região demarcada exclusiva. Muitos portugueses não sabem, mas no mundo só há dois outros casos assim: os gigantes franceses Cognac e Armagnac.O que temos de tentar identificar quando provamos uma aguardente? O crítico de vinho e gastronomia e professor universitário Fernando Meloexplica-nos o processo e conduz-nos por uma prova cega com aguardentes das três únicas regiões demarcadas.

Quando está calor tem de se estar pouco tempo aqui dentro, se não, ficamos doidos..." O desabafo de Deodoro Gomes, 72 anos, meio século de serviço na Adega Cooperativa da Lourinhã, só é vagamente perceptível nesta tarde cinzenta que marca a chegada da Primavera. No interior das galerias escuras onde se alinham dezenas de barricas com milhares e milhares de litros de aguardente, oscila na atmosfera um subtil, mas envolvente, odor a álcool. Quando o calor aperta, isto pode tornar-se inebriante. No sentido literal da palavra.

Estamos no coração de um dos produtos portugueses mais exclusivos, uma bebida espirituosa que, mesmo pelos padrões internacionais, ostenta um pedigree difícil de igualar. A Região Demarcada da Lourinhã foi criada exclusivamente para a aguardente vínica, caso único no país e que só encontra paralelo nas regiões francesas de Cognac e Armagnac. "Há muitas - e boas - aguardente velhas em Portugal", avalia João Pedro Catela, presidente da Adega Cooperativa da Lourinhã (ACL), "mas a nossa é a única que tem uma região demarcada dedicada."

Cognac, Armagnac e... Lourinhac. O trocadilho é quase irresistível, mas em breve deixará de ser um trocadilho. Porque a ACL tem planos para lançar em breve a marca Lourinhac, numa tentativa de captar a atenção dos mercados internacionais. Um trabalho "gradual, sem pressas", assume João Pedro Catela, 56 anos, um gestor comercial que trabalha na Adega Cooperativa com o mesmo estatuto de "carolice" que move tantos outros - só há quatro trabalhadores a tempo inteiro. "Não temos uma produção que sustente os grandes circuitos internacionais e, além disso, o que aqui está guardado não se estraga, só melhora com o tempo!"

O gesto que acompanha a frase carrega os olhares pelo longo corredor onde descansam as colheitas de aguardente de anos anteriores, envelhecendo em cascos de carvalho enquanto aguardam a sua inclusão na mistura final que dará origem ao lote a comercializar em cada ano. Em dois gigantescos depósitos de aço inox repousam, ali ao lado, cerca de 15.000 litros já prontos para engarrafar. Representam dois anos de comercialização.

A aguardente da Lourinhã não é um bem de consumo maciço e até há algum tempo era preciso procurar para a encontrar. Nos últimos anos, no entanto, passou a ser comercializada na rede de supermercados Modelo/Continente (o preço ronda os 30 euros) e essa plataforma das grandes superfícies já é responsável por cerca de metade das vendas da marca. O que motiva a Adega Cooperativa a tentar alargar a distribuição - na calha pode estar o grupo Jerónimo Martins.

Apesar de ser um grão de areia quando comparada com os grandes produtores franceses seus homólogos, a aguardente Lourinhã tem capacidade para responder a um crescimento da procura. Nos depósitos e madeiras da ACL existem neste momento 90.000 litros em stock, 49.000 dos quais têm mais de cinco anos, exactamente o período mínimo de envelhecimento para se fazer uma aguardente velha XO (há ainda as VS, com três anos; e as VSOP, com quatro). "Mas nós estamos a usar com um mínimo de sete anos", adianta o presidente da Adega Cooperativa. Só há Lourinhã XO.

A alquimia do tempo

Com tanto álcool concentrado debaixo do mesmo tecto, não surpreende que a atmosfera fique saturada sempre que a temperatura sobe. Aliás, é isso que explica que a lotagem (mistura final antes do engarrafamento) esteja já feita e o produto armazenado nos gigantescos depósitos com os números 9 e 10. "É um trabalho feito preferencialmente no Inverno, porque o calor solta vapores", informa João Pedro Catela.

Impõe-se perguntar se já alguém teve problemas com a Brigada de Trânsito por trabalhar nesta atmosfera etilizada. "Não", diz o presidente da ACL, "mas há pouco tempo o alarme disparou à noite e eu vim cá com a GNR. Não havia ninguém, mas, quando destapei um barril para mostrar aos homens como cheirava bem, aquilo disparou como um vulcão e eu tomei banho de aguardente..."

Ali ao lado, Deodoro Gomes mostra como se faz, levantando a rolha com cuidado e limpando a "baba" com um pano. Há muita vida dentro de uma barrica de aguardente... E muita da bebida foge no processo de envelhecimento, à medida que se infiltra através dos poros da madeira, evaporando-se. É claro que, de caminho, ganha cor e sabor, carácter e nobreza. E valoriza-se.

Mas quanto se perde, efectivamente? Sara Canas, investigadora auxiliar do INIA-Dois Portos, do Instituto Nacional de Recursos Biológicos IP, explica que, "do ponto de vista legal, se considera o valor de cinco por cento ao ano", mas salienta que esse número absoluto não leva em conta especificidades como o tipo de madeira utilizada nas barricas ou o grau de humidade relativa e a temperatura do local de armazenamento. A investigadora do laboratório que enquadra e apoia a actividade da Adega Cooperativa da Lourinhã avança que essa é uma das áreas que estão a estudar e que, "com o tempo, os resultados obtidos poderão vir a justificar nova legislação".

Para ajudar nestas contas complicadas, há algumas regras simples a ter em conta. Cada quilo de uvas permite fazer 0,7 litros de vinho e dez litros de vinho dão origem a um litro de aguardente a 78 graus, que é depois colocada nos cascos de carvalho. Há uma parte que se evapora/infiltra na madeira e, paralelamente, ao longo do envelhecimento, é efectuada a diluição da aguardente com água. Para se fazerem os lotes finais, é preciso depois cortar novamente a aguardente com água, de forma a atingir os 40 graus da bebida final.

Ou seja, no momento de servirmos um belo balão de digestivo, é como se tivéssemos na mão um cacho de uvas com 150 gramas... Mas não de umas uvas quaisquer. As castas, os solos, a cultura, a vinificação, a conservação, a destilação e o envelhecimento obedecem a regras bem definidas, ao abrigo do estatuto da Região Demarcada das Aguardentes Vínicas da "Lourinhã", estabelecido pelo Decreto-Lei nº 323/94, de 29 de Dezembro. A Reegião Demarcada da Lourinhã tinha sido criada dois anos e meio antes, pelo Decreto-Lei 34/92, de 7 de Março.

É uma distinção clara, esta de criar uma região demarcada apenas de aguardente. Mas a aura de exclusividade também tem sido fonte de problemas e complicações para quem se dedica à produção do néctar da Lourinhã. Porque as leis, muitas vezes, não se adequam a esta micro-realidade portuguesa. Uma micro-realidade feita de cerca de oito mil garrafas vendidas por ano e uma área geográfica que compreende apenas as freguesias do concelho da Lourinhã, mais duas de Peniche, uma de Óbidos, uma do Bombarral e uma de Torres Vedras.

Entraves legais

Mais lentos e pausados do que os progressos da bebida nas barricas de madeira parecem ser, tantas vezes, os passos políticos para abrir portas. "A aguardente é considerada um derivado, não um produto final da vinha. O que quer dizer que você pode pedir um subsídio para plantar uma vinha se declarar que vai produzir vinho; mas se disser que é para aguardente, não há dinheiro!" É nestas alturas que a fleuma e boa disposição de João Pedro Catela cedem terreno...

"Só que, aqui, o vinho vai todo para a produção de aguardente! Não há vinho da Lourinhã, há aguardente vínica da Lourinhã!", insiste o presidente da ACL. No ano passado, deram entrada para vinificação 160 toneladas de uva, que a adega tenta pagar aos produtores num prazo bastante curto. "Pagamos 25 cêntimos por quilo e queremos chegar aos 50 cêntimos, que é o que se paga no Alentejo, por exemplo, e já garantiria lucro aos produtores de uva." É um investimento pesado, porque só será recuperado cerca de oito anos depois, quando a aguardente velha sai para o mercado. E isso leva-nos a outro tipo de entraves legais. Os financeiros.

Um sistema comum nas grandes casas de bebidas espirituosas é o chamado vend en avant, em que os produtores de uvas ou outros investidores adquirem uma determinada quantidade de créditos sobre as aguardentes. Ou seja, na prática, colocam o seu dinheiro a render em cascos de carvalho. Alguns anos depois, a rentabilidade do investimento é bem superior à que se consegue nos depósitos bancários. "Mas em Portugal isso não está autorizado", lamentam os responsáveis da ACL, que assim se vê obrigada a adiantar dinheiro vivo com a expectativa de só o recuperar passados largos anos.

Os números da adega cooperativa mostram uma nítida tendência crescente. Em 2005 fizeram-se 3790 litros de aguardente, no ano passado foram 14 mil. "Isto acontece porque estamos a pagar depressa aos produtores. Há ainda muita uva que pode entrar na adega, mas também não podemos pagar muita mais, por falta de capacidade financeira", explica João Pedro Catela. Enquanto entidades como a Caixa de Crédito Agrícola se mantêm alheadas do processo, a solução é ir aumentando gradualmente as vendas e solidificando o negócio.

As garrafas (de vidro verde) à venda nos super e hipermercados vêm acondicionadas em caixas de madeira "feitas por um produtor local", uma forma de acentuar o pedigree da bebida. Mas também há caixas de cartão para outros distribuidores. E garrafinhas "tipo avião", para brindar convidados em casamentos, baptizados e outros eventos. Em breve, já com a inevitável marca Lourinhac, surgirão no mercado garrafas transparentes de vidro branco, com 0,5 litros de capacidade (as actuais, que se manterão à venda, têm 0,7 litros).

A ideia é piscar o olho ao mercado internacional. Um terreno onde muitas vezes o bom é inimigo do óptimo. "Para nos representarem no mercado asiático pedem-nos algumas dezenas de milhares de garrafas/ano. Ou seja, muito mais do que a nossa produção total!", exemplifica João Pedro Catela. E a exportação implica pagar o imposto de álcool - "Três euros por garrafa" - logo à cabeça...

Ajuda da ciência

A alternativa é impor-se como um produto exclusivo, de grande qualidade e a preços que reflictam essa aura de elite. Só que, para isso, será preciso bater-se com os gigantes franceses no seu próprio terreno. Vozes na Lourinhã - nomeadamente as da Colegiada de Nossa Senhora da Anunciação da Lourinhã, fundada em 2004 para a "defesa, o prestígio, a valorização, a promoção e a divulgação" do néctar da terra - sopram que representantes da região de Armagnac estiveram de visita à Adega Cooperativa e, numa prova cega, elegeram a aguardente portuguesa como a melhor, em comparação com as suas homólogas francesas.

Numa coisa, pelo menos, portugueses e franceses estão em pé de igualdade: os cientistas há muito apoiam e enquadram a sabedoria popular e o empirismo dos tempos que estiveram na génese destas bebidas espirituosas. Foi o trabalho desenvolvido por cientistas, como Pedro Belchior, e técnicos, como Estrela Carvalho (da então Estação Vitivinícola Nacional - actual INIA-Dois Portos) e João Baptista (da ACL), que levou à criação da região demarcada da Lourinhã. "Começaram por onde deviam", explica Sara Canas. "Estudaram as castas mais aptas e adequadas para produzir uma aguardente de qualidade. Depois definiram os vinhos mais aptos. E a seguir optimizaram o sistema de destilação."

Na década de 90, entrou-se numa fase posterior dos trabalhos, em que a própria Sara Canas já participou, assim como a sua colega investigadora Ilda Caldeira, centrada no envelhecimento da aguardente vínica. Em Dois Portos, estuda-se agora como optimizar o processo, de forma a encurtar o tempo que a aguardente está em contacto com a madeira, sem que isso implique qualquer perda de qualidade do produto final. Analisam os efeitos dos diversos tipos de madeiras de carvalho e de castanheiro, do fabrico das barricas (designadamente das operações de secagem e queima), a sua dimensão, as taxas de evaporação e impregnação na madeira. Algumas conclusões, embora prévias: "O castanheiro, as vasilhas de 650 litros e as queimas fortes têm originado os melhores resultados."

Um campo particularmente interessante do trabalho dos cientistas do INIA-Dois Portos tem a ver com o que poderá ser o paradigma futuro do envelhecimento das bebidas destiladas. Explica Sara Canas: "Em vez de pormos a aguardente na madeira, colocamos a madeira na aguardente." Ou seja, adeus barricas de carvalho e de castanheiro, olá grandes cubas de aço inox com fragmentos de madeira lá dentro. Sejam eles aduelas de barril ou peças mais pequenas, como os "dominós". E os resultados "são diferentes" conforme o formato da madeira. Um dia, as barricas ficarão reservadas ao envelhecimento de produtos de (ainda maior) excelência.

"Posso desde já dizer que esta tecnologia [bastante mais barata] acelera o envelhecimento, mas ainda há muitas questões que precisam de respostas, nomeadamente as de segurança alimentar, que são fundamentais", explica a investigadora. E, uma vez que se fala nisso, os cientistas também já sabem que a aguardente, à semelhança do vinho, tem alguns efeitos benéficos para a saúde, atenuando o efeito do álcool. Desde que, naturalmente, consumida com moderação. "A aguardente extrai compostos da madeira, muitos dos quais possuem actividades antioxidantes. Isto não acontece nas bebidas como o gin ou a vodca, que não envelhecem em madeira", explica Sara Canas.

As conclusões que forem tiradas deste trabalho de investigação, um processo demorado dadas as características do trabalho que é preciso fazer (não é possível estudar o envelhecimento sem dar tempo ao tempo...), poderão ser aplicadas na Lourinhã, mas são também susceptíveis de extrapolação para outras regiões, nacionais e internacionais. "O que aqui se faz é investigação aplicada. É preciso perceber que não andamos aqui a gastar dinheiro só por gastar. Trata-se de um serviço público", reforça Sara Canas em jeito de despedida.

Tudo se transforma

Os vitivinicultores da Lourinhã são a prova viva de que o génio de Lavoisier continua bem actual. Quando o químico francês afirmou que, na natureza, "nada se cria, nada se perde, tudo se transforma", estaria longe de imaginar a sua máxima aplicada na vila portuguesa tornada famosa pelos dinossauros que se escondem no seu subsolo. Na verdade, e invocando outra expressão universal, é difícil saber se os donos das vinhas da região ouviram primeiro as más notícias ou as boas.

Devido às características dos solos e ao microclima da região, há aqui uma biologia muito particular, feita, por exemplo, de pêra-rocha ou de uvas que dão origem a um vinho de fraco teor alcooólico e elevada acidez. "São vinhos que não passam dos 9/10 graus", sistematiza João Pedro Catela. Pelos parâmetros actuais, não têm cabimento no mercado.

Mas então, se o vinho não é um produto interessante, por que insistiram os lourinhanenses em plantar vinhas e cuidar delas durante séculos? E é então que vêm as boas notícias: depressa se percebeu que esta região era pátria de excelentes aguardentes. Ao criar a Real Companhia Velha, no século XVIII, o Marquês de Pombal sabia o que tinha ali: durante dois séculos, o vinho do Porto foi feito com aguardentes made in Lourinhã.

Os mais velhos da terra lembram-se dos tempos em que havia "uma destilaria em cada esquina" - eram 32 quando se constituiu a Adega Cooperativa, em 1957. Os produtores de Porto asseguravam um fluxo contínuo do negócio e durante muito tempo o néctar da Lourinhã diluiu-se na mais internacional e cotada das bebidas espirituosas de Portugal. Mas na década de 1980 passou a ser obrigatório usar aguardentes da região de produção e as aguardentes de vinho verde entraram em cena. Hoje, a Lourinhã só tem uma destilaria.

Depois desta má notícia, havia que procurar as boas. E elas estavam lá, desde sempre. As condições não tinham mudado, apenas o enquadramento. A aguardente da Lourinhã era boa, só não tinha identidade própria. E os lourinhanenses foram à procura dela.

Os vinhos continuavam a não ser interessantes para o mercado. Mas têm as características ideais para fazer aguardente: por causa da sua acidez, não precisam de ser tratados com dióxido de enxofre, um antiséptico que marca o vinho - e a aguardente - com o seu aroma. Para se garantir que as uvas têm uma acidez elevada, é costume vindimar mais cedo, antes que o açúcar se concentre, fazendo reduzir o ácido. Mas nestas regiões não é preciso: junto ao mar, a frescura do clima - quem nunca gelou numa praia do Oeste, mesmo em pleno Verão, que atire a primeira pedra... - faz com que as uvas amadureçam mais lentamente.

Quando há aromas que passam para a aguardente, tirá-los transforma-se numa carga de trabalhos. É por isso que o vinho destinado ao fabrico de aguardente não pode receber qualquer tratamento. Estamos em presença de produtos cem por cento naturais. E quem sabe disso melhor do que ninguém é Deodoro Gomes, o homem que conhece de cor os lotes, os sabores e as texturas da adega onde envelhece a aguardente Lourinhã: "Se às vezes passa algum sabor tem de se tirar antes de ir para os cascos, porque aí já não o perde."

Vidas difíceis

O que nos traz de volta ao cofre-forte da Lourinhã, aos escuros corredores onde se alinham as barricas recheadas de espírito. Em todas elas uma legenda, indicando o ano da colheita, a madeira de que são feitos e o tipo de queima (as superfícies interiores, as que entram em contacto com a aguardente, são queimadas e o nível de queima pode ser forte, médio ou ligeiro, o que tem efeitos diferentes durante a fase de envelhecimento). Na cabeça de Deodoro, mais do que números e letras, cada barril corresponde a uma paleta precisa de aromas e cores, densidades e sabores.

Os corredores formam um "U" com partida e chegada ao edifício principal ocupado pela Adega Cooperativa. O imóvel pertence ao Ministério da Agricultura, porque a ACL vendeu em tempos as suas instalações para que a Câmara Municipal urbanizasse os terrenos. Com este negócio, foi possível pagar as dívidas e enfrentar o futuro com outra segurança.

Mas a grande âncora está mesmo aqui, descansando neste verdadeiro bunker de cimento armado, protegido por alarme e com o recheio completamente no seguro. É aqui que estão os anos futuros da aguardente Lourinhã, é aqui que repousa o dinheiro investido em uvas nas últimas décadas. Deodoro é quem gere este espaço, quem mexe a aguardente dentro dos enormes barris (uns de 250 outros de 630 litros) utilizando uma espécie de varinha mágica de proporções, digamos, jurássicas.

Sente-se o carinho com que acaricia as madeiras mais antigas, os dedos rugosos parecendo feitos da mesma matéria. É também desta relação que nasce uma grande aguardente. Da paciência e da atenção. E de um sem-número de pequenas coisas que mesmo quem anda nisto há décadas não ousa pensar conhecê-las todas. À cautela, faz-se como fizeram os nossos pais e avós. Limpa-se o chão, mas nunca as paredes. Quem sabe se aqueles bolores e musgos acantonados nas esquinas do tecto não são parte do segredo?

Só há duas coisas que assustam João Pedro Catela: a possibilidade de uma explosão e a ameaça das cheias. Há quatro anos, as águas do rio Grande galgaram as margens e invadiram a adega. As barricas resistiram, a limpeza das instalações tenha sido "uma trabalheira". "Mas a aguardente não se estraga. Isto é álcool!", recorda o presidente da ACL.

Para se assegurar de que tudo voltava à normalidade lá estava Deodoro. Ele é uma enciclopédia viva de tudo o que se passa entre aquelas paredes. Quando é preciso fazer os lotes para engarrafamento, é a este homem que fica confiada a minuciosa tarefa de encontrar o equilíbrio perfeito entre cor, aroma e sabor, sempre dentro dos parâmetros de teor alcoólico e densidade que compõem a identidade da marca. "Ele é que faz esse trabalho, depois vêm os engenheiros fazer as provas oficiais e aprovar o lote", elogia Catela.

O presidente também não fica de fora do processo. "Às vezes é preciso provar e, para isso, temos de o fazer de manhã, enquanto a boca não está alterada pela comida. Só que meter aguardente na boca logo de manhã... enfim, provo e deito fora." Sorriso malandro: "Mas acabo sempre por beber um bocadinho." Deodoro Gomes também se queixa. "Para fazer os lotes é preciso escolher os cascos, ver a cor, o grau... Provar e fazer novas misturas, voltar a provar. Passam-se aí tardes muito trabalhosas. Às vezes até dá dor de cabeça."

Artigo publicado na revista Pública de 04-04-2010
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