Cancelamento simples de matrículas de carros pode alimentar sucatas ilegais

Anulações feitas por proprietários que apenas digam que não vão mais circular com os carros na via pública preocupam ambientalistas e gestores da reciclagem.

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Dezenas de milhares de matrículas automóveis continuam a ser canceladas anualmente em Portugal “por ordem do proprietário”, uma figura legal que pode representar uma brecha para a entrega de carros velhos a sucatas ilegais.

Apesar de mudanças recentes no Código da Estrada, esta situação permanece como uma das pedras no sapato do sistema de gestão dos veículos em fim-de-vida em Portugal, implantado há uma década e que registou grandes quedas no número de carros enviados para a reciclagem nos últimos anos.

Cancelar a matrícula de um carro que vai para a sucata só pode ser feito mediante a apresentação de um certificado a assegurar que o automóvel foi destruído num centro de desmantelamento legalmente autorizado. Esta norma vigora desde 2003, fruto de uma directiva europeia, com efeitos práticos em 2004. Desde então, cerca de meio milhão de automóveis foram destruídos legalmente pela rede da Valorcar, o sistema de gestão montado pela indústria para assegurar a reciclagem dos automóveis.

O Código da Estrada prevê, no entanto, outras situações em que é possível o cancelamento de matrículas. Entre elas, está a anulação sempre que o proprietário deixe de utilizar o automóvel na via pública.

Segundo números do Instituto da Mobilidade e dos Transportes (IMT), em 2013 houve cerca de 90 mil casos destes, representando 36% de todas as matrículas anuladas. Os cancelamentos feitos “por fim de vida” do automóvel foram 112 mil, 44% do total. Os restantes casos são sobretudo de cancelamentos oficiosos por tribunais ou câmaras municipais, de exportação de veículos ou de carros registados noutros países da União Europeia.


Os cancelamentos “por ordem do proprietário” estão há anos na mira das preocupações da Valorcar e da associação ambientalista Quercus. Na prática, argumentam ambas as organizações, qualquer um pode dizer ao IMT que não circula mais com o carro na via pública e arriscar entregar o veículo a um sucateiro ilegal. Ou então pode utilizar este expediente para cancelar matrículas de automóveis que já foram destruídos ilegalmente – evitando assim o pagamento por tempo indeterminado do Imposto Único de Circulação, que recai sobre a posse do veículo.

Apenas uma fiscalização eficaz – difícil devido aos números envolvidos – poderá evitar tais situações. “Um cancelamento ‘por ordem do proprietário’ pode significar não se ter entregue o automóvel nos locais certos”, afirma Ricardo Furtado, director-geral da Valorcar.

O IMT tem um entendimento diferente. “O cancelamento da matrícula por ordem do proprietário corresponde às situações em que este, por motivos diversos, não tem interesse na circulação normal do veículo, sem que contudo tal facto corresponda a um veículo em fim de vida”, defende a instituição, em respostas escritas ao PÚBLICO. Ou seja, nunca seria, nestes casos, necessário o certificado de destruição. “Trata-se na prática de uma suspensão temporária da matrícula”.

Segundo as alterações ao Código da Estrada, em vigor desde Janeiro passado, os carros abrangidos nestas situações são os que passam “a ter utilização exclusiva em provas desportivas ou em recintos privados não abertos à circulação”. O proprietário tem de apresentar um requerimento, dizendo onde está o automóvel. Segundo o IMT, nunca foi detectada uma falsa declaração.

A Quercus já tinha apresentado, há dois anos, uma queixa à Comissão Europeia, por entender que o Código da Estrada violava a directiva dos veículos em fim-de-vida – havendo, no país, duas legislações conflituantes nesta matéria. Quando a revisão do código foi discutida, em 2013, a associação ambientalista e a Valorcar sugeriram a eliminação daquelas situações.

A Agência Portuguesa do Ambiente também sugeriu que fosse feita uma referência específica à necessidade do certificado de destruição no Código da Estrada. Esta referência foi incluída, mas o código manteve todos outros casos em que a anulação das matrículas já era possível.

“Houve uma oportunidade de ouro para se corrigir o problema”, afirma Pedro Carteiro, da Quercus. “Contudo, a nova lei voltou a permitir ‘alçapões’ que deveriam cobrir só situações de excepção, mas continuam a ser utilizados abusivamente para cancelamentos de matrículas”.

O número de veículos em fim-de-vida abatidos legalmente na rede da Valorcar atingiu um pico em 2008, com 88 mil unidades. Caiu nos anos seguintes, devido à crise económica. E sofreu uma descida mais acentuada em 2011, quando terminou o incentivo ao abate de carros velhos – um desconto nos Imposto sobre Veículos, na compra de um automóvel novo.

Apesar de uma pequena recuperação, em 2013 o número total ficou 34% abaixo do pico de 2008.

A reintrodução do incentivo ao abate de veículos em fim-de-vida é uma das propostas para a fiscalidade verde entregues ao Governo este mês por uma comissão de peritos.

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