Milhares de advogados de toga em frente à AR em "defesa do direito à justiça pública"

No protesto contra o novo mapa judiciário, a bastonária lembrou que "só nas ditaduras não se recua nas medidas". Elina Fraga foi impedida de discursar na escadaria do parlamento.

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O protesto contou com advogados de todo o país Miguel Manso
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Mesmo com o forte calor, os advogados mantiveram as togas no protesto Miguel Manso
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A bastonária dos Advogados teve de discursar em cima de um caixote Miguel Manso

Balões negros em centenas de mãos de advogados sobreaquecidos pelo tórrido sol e pelas togas negras que simbolizam a profissão. Bonés de populares lado a lado com pastas de pele a fazer as vezes de chapéu dos causídicos e a tentar travar o suor em bica. Esta é a imagem que marca nesta terça-feira as imediações da escadaria da Assembleia da República (AR). Muitos advogados, funcionários judiciais, autarcas e populares responderam ao apelo da Ordem dos Advogados para que se juntassem à manifestação em Lisboa, assinalando o primeiro dia de férias judiciais, mas de olhos postos na rentrée de Setembro – altura em que entra em vigor o novo e polémico mapa judiciário para o qual pedem pena capital.

Com a presença do hino, mas também embalado por músicas como "eles comem tudo" de Zeca Afonso, o protesto, que é o primeiro alguma vez marcado por aquela entidade, tem como principal mote o “não” ao novo mapa que entra em vigor a 1 de Setembro. A bastonária dos advogados, Elina Fraga, considera-o prejudicial tanto para quem trabalha no sector como para os cidadãos e antecipa mesmo um “colapso judicial”.

Em declarações ao PÚBLICO, a bastonária alerta que o encerramento de tribunais em todo o país "representa um recuo do Estado de Direito" e espera, por isso, que a ministra da Justiça pondere outra solução. "Só nas ditaduras não se recua nas medidas e espero que a senhora ministra oiça o que o povo clama", acrescentou Elina Fraga. Sobre a manifestação, descreveu-a como "histórica", adiantando que durante toda a tarde contou com entre 3000 e 4000 advogados. Mas fonte da PSP disse ao PÚBLICO que no relatório sobre o protesto as forças de segurança referiram 2500 pessoas. No local a acompanhar o protesto estiveram 40 agentes, num total de cinco equipas de intervenção rápida da PSP mais a patrulha que já está normalmente destacada no Parlamento.

Depois, num discurso em cima de um caixote disse que não se "verga" por não a terem deixado falar a partir da escadaria do Parlamento. Reiterou ainda que se trata de um protesto "em defesa do direito à justiça", denunciando que as mudanças na organização dos tribunais só irão servir "os interesses de alguns grandes escritórios de advogados da Avenida da Liberdade", em Lisboa.

Na manifestação há gente de todo o país. O advogado João Salazar, de 47 anos e a trabalhar sobretudo no Seixal, vestiu esta terça-feira a toga para "defender os direitos dos cidadãos", mas desta vez na rua. "É o fim da justiça de proximidade", garante, antecipando grandes dificuldades de deslocação para as populações. "Os meus pais estiveram nos protestos estudantis de 1968 e infelizmente vejo o tempo a andar para trás", afirma.

De mais longe vem a advogada Adelaide Modesto, de 33 anos e a trabalhar em Viseu, "o distrito mais afectado pelo mapa judiciário, uma verdadeira violação dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos a quem será negado o direito à justiça". A jurista insiste que as pessoas vão percorrer grandes distâncias para conseguirem resolver os problemas. "A distância no mapa não é a real, há muitos problemas de acessibilidades", acrescenta, dizendo que veste a toga "em nome da igualdade".

A manifestação foi aprovada na assembleia-geral extraordinária da Ordem dos Advogados, que decorreu no passado dia 30 de Maio. Nesse mesmo dia foi aprovada, ainda, a apresentação de uma queixa-crime contra todos os membros do Governo, por atentado ao Estado de Direito. A queixa será entregue "em breve" na Procuradoria-Geral da República, segundo Elina Fraga, que já antes explicara que a extinção dos tribunais atenta contra o direito fundamental dos cidadãos de acesso à justiça, subvertendo as regras e princípios do Estado de Direito Democrático.

 Os procuradores foram convidados a estar presentes na manifestação, mas declinaram o convite, com o presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, Rui Cardoso, a explicar que concordam com algumas críticas mas que também admitem que “não é possível ter tribunais em todos os locais”. Já os juízes, por outro lado, asseguraram através do presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP), Mouraz Lopes, que nem sequer foram convidados pelos advogados.

 O que muda com o mapa?

De acordo com o novo mapa judiciário - que reduz as 231 comarcas para apenas 23 - 20 tribunais vão fechar portas (por terem menos de 250 processos por ano) e 27 são transformados em secções de proximidade, onde se realizarão actos judiciais como inquirições por videoconferência e onde os cidadãos poderão consultar processos e entregar requerimentos. Em nove deles, mediante circunstâncias excepcionais, poderão ser realizados alguns julgamentos. No memorando de entendimento com a troika (Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu), o Governo comprometia-se a encerrar um total de 49 tribunais.

Dos actuais 311 tribunais, a reforma converte 264 em 218 secções de instância central e 290 de instância local. As primeiras terão os processos mais complexos e graves. Julgarão, na área cível, processos em que estejam em causa mais de 50 mil euros e na área criminal casos em que possa ser aplicada uma pena de prisão superior a cinco anos. As outras ficarão com os processos mais pequenos.

A bastonária acredita que estes tribunais, aos quais serão retirados os processos mais complexos, ficarão abertos apenas a prazo. No futuro, alerta Elina Fraga, vão ser confrontados por terem poucos processos.

Já as instâncias especializadas aumentam de 233 para 390. A gestão dos tribunais também passará a ser tripartida, contando com um juiz presidente do tribunal, um coordenador do Ministério Público e um administrador judiciário.

A própria procuradora-geral da República, Joana Marques Vidal, instou os magistrados a não marcarem diligências judiciais para Setembro, para garantir que o novo mapa entra primeiro em pleno funcionamento. Mas a ministra da Justiça já reiterou por diversas vezes que a reforma vai mesmo avançar e que não haverá qualquer recuo. Paula Teixeira da Cruz afirmou mesmo que “a 1 de Setembro todas as comarcas estarão prontas a funcionar” e que espera “uma passagem tranquila no âmbito desta reforma”.

Até agora já foi feita a migração de mais de 660 mil processos, de um total de mais de 3,5 milhões, segundo números avançados pelo Jornal de Negócios. As mudanças físicas só serão feitas ao longo do mês de Agosto. Em termos de processos físicos muitos vão permanecer nas mesmas instalações, estimando a tutela que só mudem fisicamente cerca de 700 mil, com a colaboração das autarquias, PSP, GNR e Exército.

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