Cem mil escovas de dentes no lixo

Depois do vidrão, do papelão, do embalão, do pilhão, do electrão e do rolhão, eis o aumentativo ecológico que faltava: o escovão.

“Mas o que é isso? Deita fora esta escova”, disse-me uma colega, ao cruzar-se comigo no corredor. Eu vinha de um bacalhau à lagareiro na cantina e ia a caminho dos lavatórios para restaurar a higiene bucal. Trazia a escova de dentes no bolso da camisa, uma táctica cómoda mas perigosa: certa vez, numa entrevista, por pouco não a ia sacando em vez da caneta.

“Deitar fora?”, afirmei, retirando-a do seu ninho para melhor observá-la. De facto, inspirava pouca confiança. O corpo já assumira uma certa patine, as cores tristemente deslavadas pela idade. As partes mais expostas e angulosas estavam ressequidas e esfareladas. Da cabeça, as cerdas abriam-se desalinhadas, em ampla confusão. “Não vou nada deitar fora, ainda dá para muito tempo”, retorqui.

Revoltada com o miserável estado do objecto, minha colega deu por encerrada a fase dos argumentos e partiu para as vias de facto. Agarrou na escova, num inesperado rompante para arrancá-la das minhas mãos. “Dá cá isso. Vai comprar uma nova”, ordenou. Nos segundos subsequentes, lutámos como dois cães pela posse daquele destroço com que limpo os dentes. A cena – inédita na redacção e, eu arriscaria a dizer, na história do jornalismo contemporâneo – terminou com vitória minha.

Enquanto executava a devida limpeza pós-repasto, tentei contabilizar a frequência com que costumava trocar de escova. A verdade é que eu não me lembrava da última que havia comprado.

Dizem os higienistas que a substituição deve ser feita uma vez a cada três meses – para o bem da arcada dentária e do cash-flow dos fabricantes. Se assim for, todos os anos serão descartados cerca de 40 milhões de escovas em Portugal. São aproximadamente 110.000 unidades por dia.

Trata-se, é claro, de um cenário extremo, que não leva em conta que parte da população ainda não tem dentes e outra já os perdeu. Também é preciso descontar a parcela do património dentário nacional que não se submete a uma escovadela há anos – um autêntico crime contra o ambiente, pelas suas óbvias consequências atmosféricas.

Seja como for, é muita escova. De regresso ao meu posto de trabalho com este dilema na cabeça, fui à procura de uma solução e fiquei satisfeito em saber que já há nalgumas farmácias em Portugal um sistema incipiente de recolha e reciclagem do utensílio. Assim sendo, depois do vidrão, do papelão, do embalão, do pilhão, do electrão e do rolhão, eis o aumentativo ecológico que faltava: o escovão.

Para os que não querem vender a consciência à reciclagem, que usualmente desonera o cidadão dos seus pecados ambientais, existem outras alternativas. Há quem transforme as escovas velhas em pulseiras e colares, bastando aquecê-las para que se tornem moldáveis – embora o custo energético possivelmente anule o benefício da reutilização.

Existem também modelos em que só a cabeça é descartável. E, como não poderia deixar de ser, já se encontra no mercado a escova biodegradável, recém-ingressa neste selecto clube de produtos santos.

Só falta mesmo a comestível – ideia que não deve ser menosprezada. Mastigar a própria escova ajudaria a reciclar os restos de comida. Só há um problema: quem é que vem depois fazer a faxina final?

Confesso que o estado da minha escova tem menos a ver com preocupações ecológicas e mais com puro desleixo. Mas agora que as contas estão feitas, vou aguentar-me mais um pouco com ela. Se me cruzo de novo com a minha colega no corredor, vai ser bonito, vai.
 

   

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