É ponto assente entre partidos que casamento forçado deverá ser crime

Alteração decorre da Convenção para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, que entrou em vigor a 1 de Agosto. Parlamento prepara ajustamento da lei

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Os casamentos forçados são uma prática residual nas comunidades de etnia cigana Daniel Rocha

Portugal deverá criminalizar o casamento forçado ou qualquer convivência equivalente. É um ajuste da legislação nacional à Convenção para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, conhecida por Convenção de Istambul, que a Assembleia da República está a preparar.

O Grupo de Trabalho sobre as Implicações Legislativas da Convenção de Istambul já ouviu as organizações indicadas pelos partidos. Terão agora de ser ouvidos em plenário o Conselho Superior de Magistratura, o Conselho Superior do Ministério Público e a Ordem dos Advogados.

Já há alguns consensos, segundo adiantou a coordenadora do grupo, a deputada Carla Rodrigues (PSD). E um deles é o do casamento forçado ou qualquer outra forma de convivência marital imposta. “Ratificamos a convenção sem reservas; vamos ter de cumprir o que lá está.” É ponto assente que este crime deve ser previsto na lei. De acordo com aquela convenção, que entrou em vigor a 1 de Agosto, os países signatários deverão “adoptar medidas legislativas ou outras necessárias para assegurar a criminalização da conduta de quem intencionalmente forçar um adulto ou uma criança a contrair matrimónio”. E a conduta de quem atrair uma criança ou um adulto para outro Estado com tal propósito.

Não é que exista um vazio legal. Conforme se pode ler num parecer emitido pela Associação Sindical de Juízes Portugueses, o casamento forçado pode configurar “coacção, sequestro, ameaças, escravidão, violência doméstica, coacção sexual, violação ou, no caso dos menores, abuso sexual”.

Falta, em Portugal, uma lei específica. Em Junho, a pensar em práticas de comunidades oriundas do Paquistão e da Índia, lembram os juízes, Inglaterra e o País de Gales passaram a punir com pena de prisão até sete anos quem forçar alguém a casar-se. “A nível nacional, a discussão teria de ser aberta, dependendo muito de qual a realidade ‘no terreno’ neste domínio.”

Portugal não está isento de tais práticas — pressupõe-se que aconteça no seio de comunidades de etnia cigana ou oriundas de países asiáticos ou africanos. Há ideia de que é residual, sustenta a deputada.

O caso mais violento de que há memória recente remonta a Abril de 2009: três homens e uma mulher foram indiciados pelo rapto de uma menina de 11 anos. Levaram-na de Santa Maria da Feira para Montemor-o-Velho e forçaram-na a “casar-se” com um rapaz de 18. Fora retirada aos pais biológicos e adoptada por outra família de etnia cigana e antes mesmo prometida àquele rapaz.

Ainda em Dezembro de 2013, a PJ deteve em Aveiro quatro pessoas de etnia cigana. Uma rapariga de 13 anos que vivia com um rapaz de 17. Segundo então comunicaram as autoridades, o casamento fora combinado entre os pais “segundo os seus costumes e tradições”. Foram implicados num crime de abuso sexual de menor.

“Há diversas formas de forçar” uma pessoa a unir-se a quem não deseja, sublinha Maria José Casa-Nova, coordenadora do Centro de Educação para os Direitos Humanos da Universidade do Minho. “Há o forçar pelo rapto e há o forçar pela manipulação, pelo convencimento de que é o melhor.”

Combinação de casamentos
Ainda é comum, explica a especialista em comunidades ciganas, os pais combinarem os casamentos. Nasce uma criança e um pai vira-se para outro: “A tua filha [ou o teu filho] é para o meu filho [ou para a minha filha].” O outro responde sim ou não. Se responde que sim, as crianças ficam reservadas uma para a outra.

Na maior parte dos casos, o compromisso pode ser quebrado se a rapariga (ou rapaz) não gostar do noivo (ou da noiva). Nalguns casos, porém, as famílias não admitem ruptura. Pode fugir com quem lhe agrada umas horas ou uns dias para casa de pessoa “de honra”. Essa fuga bastará para que sejam considerados casados, mas as suas famílias podem demorar anos a aceitá-los.

Nas comunidades ciganas, não há um papel assinado, um contrato legal que possa ser anulado por faltar vontade. Muitas vezes, nem sequer há idade legal — 16 anos — para contrair matrimónio. As raparigas casam-se, por norma, aos 14, 15, 16 anos e os rapazes aos 16, 17, 18, 19.

 “São preparados para se casarem nessas idades”, diz Maria José Casa-Nova. A ideia vai sendo incorporada de forma mais ou menos inconsciente e, quando chega a hora, parece natural. O novo casal fica a morar em casa da família do noivo. “Os pais têm consciência de que eles ainda precisam de ser orientados e orientam-nos [por exemplo] no que diz respeito aos negócios.”

No parecer que entregou ao grupo de trabalho parlamentar, a Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género (CIG) defende que se estenda a criminalização de casamento forçado à “conduta de quem obrigue ou sujeite uma criança ou jovem, que não tenha idade núbil, a um determinado acto que, embora não em termos civis, se reconduz, na prática, a uma vivência considerada como casamento, de acordo com as convenções sociais da comunidade a que pertença”.

A Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV) defende que se vá além do casamento forçado stricto sensu e que se abarque “qualquer forma de casamento precoce”. A União de Mulheres Alternativa e Resposta vai ainda mais longe: sugere que se criminalize “os casamentos precoces, os casamentos arranjados e a compra de noiva”. Fazer uma lei específica a criminalizar o casamento forçado parece uma opção adequada àquelas organizações. Entende a APAV, porém, que também pode ser encaixada no crime de tráfico de seres humanos. Tal permitiria enquadrar as diversas condutas típicas do tráfico de seres humanos — oferecer, entregar, recrutar, aliciar, aceitar, transportar, alojar ou acolher a pessoa.

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