Casal com parceiro transexual autorizado a fazer inseminação artificial

Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida emite parecer inédito em Portugal.

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Parecer diz que estão reunidas as condições previstas na lei: um casal de elementos de sexos diferentes em que uma das partes é infértil Adriano Miranda

Um casal em que um dos parceiros é uma mulher e outro era um transexual, que era mulher mas mudou de sexo e que hoje é homem, quer engravidar recorrendo à inseminação artificial. A clínica de Lisboa onde pretendem fazer o tratamento pediu parecer ao Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida (CNPMA) que autorizou o pedido notando que estão reunidas os requisitos previstos na lei, é um casal de elementos de sexos diferentes em que uma das pessoas é infértil (o homem que era mulher). É a primeira vez que um pedido deste tipo dá entrada neste órgão, revelou ao PÚBLICO o seu presidente, Eurico Reis.

O pedido deu entrada no CNPMA a 3 de Dezembro e a decisão é da última sessão em que este órgão, que regula a actividade das técnicas artificiais de procriação, esteve reunido, a 13 de Dezembro. A lei de 2006 define que têm direito a usar estas técnicas apenas pessoas casadas ou que vivam em união de facto há pelo menos dois anos, desde que sejam de sexo diferente.

Neste caso, o elemento masculino do casal já tinha o seu processo de reatribuição de sexo concluído, tendo ficado estéril em consequência dos tratamentos hormonais a que se é sujeito para, neste caso, ficar com as características físicas de um homem, por exemplo, ficar com pelos e barba. O pedido apresentado ao CNPMA não especifica mas o mais comum nestes casos é que, além do tratamento hormonal, nos casos de mulheres que passam a ser homens, sejam depois sujeitos a cirurgia para remoção das mamas e depois da vagina, útero e ovários, havendo, por norma, de seguida um processo de construção do sexo masculino, com um pénis (faloplastia), escroto e testículos, explica o sexólogo clínico Pedro Freitas, que faz parte de uma equipa de sexologia clínica que faz diagnóstico e acompanhamento de transexuais no Hospital de Jesus, uma clínica privada em Lisboa.

As pessoas que são transexuais passam por um longo processo que exige, à partida, dois diagnósticos independentes em que as equipas médicas têm que concordar que a pessoa sofre de disforia de género, explica o médico. Depois disso, começam a terapia hormonal, que é acompanhada de psicoterapia. Depois da terapia hormonal, quando já houve transformações corporais suficientes, passam a uma fase chamada de "prova real de vida". Durante este período passam a viver em sociedade de acordo com o sexo que sentem que é o seu, com um novo nome, vestuário adequado ao seu género. "Quando tudo corre bem são dois anos, só depois avançam para a cirurgia", explícita o sexólogo.

O que acontece é que "a hormonoterapia de longa duração conduz à infertilidade", nota o médico, que é tornada irreversível pelas cirurgias de remoção dos órgãos sexuais com que nasceram. Eurico Reis explica que a lei que regula a utilização de técnicas de PMA apenas permite o seu uso quando haja "um diagnóstico de infertilidade". O que estava em causa é o facto de, neste caso, a infertilidade resultar "de um acto humano", nota Eurico Reis. Como a lei nada diz nada em relação às causas dessa infertilidade, nada diz sobre se essa infertilidade tem que ser "natural", considera-se, por isso, admissível a procriação medicamente assistida nesta situação.

O que este casal pretende é recorrer a esperma de um dador e depois fazer inseminação artificial (os espermatozoides são depositados no útero da mulher), algo que foi autorizado.

O presidente da ILGA Portugal - Intervenção Lésbica, Gay, Bissexual e Transgénero, Paulo Corte Real, diz que a decisão limita-se "a assegurar os direitos reprodutivos das pessoas, reconhecendo-lhes a sua identidade de género".

Na mesma sessão do CNPMA, por coincidência, deu entrada um outro pedido inédito, explica o juiz desembargador Eurico Reis. Um transexual que ainda é mulher mas que vai avançar no processo de reatribuição de sexo para se tornar um homem pediu a uma clínica para congelar os seus ovócitos, para mais tarde poder recorrer a eles se pretender engravidar com uma futura parceira. Também neste caso o CNPMA autorizou com a mesma argumentação, ou seja, esta mulher vai tornar-se estéril durante o processo de reatribuição de sexo, considerando-se "legítimo que uma pessoa queira ter filhos biológicos", refere o magistrado.

Mas aqui a prática já existe em alguns casos. O cirurgião Celso Cruzeiro, director do serviço onde são feitas operações de mudança de sexo no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, lembra que a boa prática clínica obriga a que se informe estes doentes que existe a possibilidade de congelação de gâmetas antes de um processo de esterilidade que será irreversível, tal como se faz com os doentes com cancro que vão ser sujeitos a quimioterapia.

Paulo Corte Real diz que que nem sempre as pessoas recebem esta informação durante o processo de acompanhamento, embora faça parte das boas práticas clínicas.

O sexólogo Pedro Freitas sublinha que "quase todos querem ser pais ou mães, a parentalidade não tem nada a ver com a transexualidade. A identidade de género não define uma pessoa. Eles são pessoas iguais a todos nós". Na sua experiência, a maior parte pensa na adopção porque "provavelmente ninguém sabe que há esta possibilidade [da congelação]". Os três casos que conhece de pessoas que recorreram à congelação de gâmetas "vêm de famílias com poder económico". Estima-se que existam em Portugal cercas de 200 transexuais, cerca de 60% são mulheres que querem ser homens.

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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