Carta Aberta à Ministra da Justiça a propósito do novo CPA

Não deixa de ser irónico pensar que o novo Código do Procedimento Administrativo mal nasce comece logo a morrer...

Quis o Governo e V. Exª. em particular — e bem — promover a revisão do Código do Procedimento Administrativo (CPA) que vigorou, entre nós, por mais de 20 anos. Quando entrou em vigor, em 1991, foi um marco importante na codificação de regras — então muito dispersas ou inexistentes — sobre procedimento administrativo e, ao mesmo tempo, sobre garantias dos particulares.

Durante todos estes anos, a doutrina e a jurisprudência foram ricas na interpretação das disposições do Código. Disposições importantes. Disposições que mudaram — em muito, e bem — a forma de relacionamento das Administrações Públicas com os particulares. Mas o mundo também foi mudando. E mudou muito. Aliás, como é habitual. O mundo está sempre em mudança. Até os governos mudam. Novas formas de comunicar surgiram. Novos meios de relacionar as Administrações Públicas. Teorias emergiram sobre o exercício partilhado das funções do Estado. Tudo mudanças que levaram V. Exª. e o Governo a solicitar à Assembleia da República lei que autorizasse o Executivo a aprovar um novo CPA. A lei de autorização legislativa foi concedida — e bem — e veio a ser publicada a 11 de julho de 2014. Concedeu prazo de 180 dias — e bem — para o Governo legislar. O Governo designou uma comissão. A comissão ouviu quem entendeu e não entendeu ouvir todos os especialistas. E bem. Porque ouvir todos os especialistas nem sempre é possível, mesmo que eles tenham disponibilidade para serem ouvidos. E os especialistas nem sempre dizem coisas acertadas. Coisas que gostem de ser ouvidas pelos outros especialistas. E isso pode atrasar os trabalhos. O que não é bom. A justiça deve ter tempos certos.

A comissão trabalhou seguramente de forma árdua — e bem (porque foi dedicada). Fez escolhas. Escreveu um texto. Com base no que ouviu. E com base no que pensava. Certamente — como acontece com estas comissões — nem todos os especialistas (que faziam parte da comissão) concordaram com tudo o que foi escrito. Teriam — alguns — outras soluções. Tudo isso é normal.

Depois de todo este intenso trabalho o Governo legislou. Os resultados daquele trabalho e da competência legislativa do Executivo foram publicados no dia 7 de janeiro do corrente ano, no jornal oficial que em Portugal se chama Diário da República. É o boletim oficial onde são publicadas as principais leis do nosso País. O novo CPA — e bem — foi publicado no jornal oficial das coisas importantes e principais. Entrou por estes dias em vigor — e bem. Deram-nos tempo para o ler. Para refletir sobre as escolhas feitas. Sobre o que se mantém. Sobre o que é o novo. Sobre o que não está bem. Sobre o que já foi criticado. Sobre os lapsos, os erros, as incongruências. Sobre alguma desorganização que paira sobre o diploma. A desorganização de alguns artigos é notória. Em Direito o que é notório não carece de prova. Parece que falta técnica legística. Parece, mas pode não faltar.

Todos — ou quase todos — esperávamos, pelo menos, uma declaração de retificação. Pelo menos sobre alguns aspetos adjetivos. Ou até sobre alguns aspetos mais substantivos. Tudo isto se esperava antes da entrada em vigor do diploma. Mas tal não aconteceu — e mal.

Não há documentos perfeitos. Basta terem origem humana. Mas o novo CPA é um diploma estruturante na nossa vida coletiva. É essencial que as Administrações Públicas e os particulares o percebam bem. Este novo CPA tem aspetos que não se percebem. Há aspetos menos conseguidos. Não é necessário referir que no preâmbulo do decreto-lei que aprova o CPA são muitos e vários os lapsos e até os erros de remissão para artigos constitucionais que não existem. Mas dir-nos-á: o preâmbulo é apenas o preâmbulo. E temos de lhe dar razão. Ajuda a captar o sentido de algumas das escolhas. Apenas isso. Nada mais do que isso. Não tem valor normativo. Ajuda à interpretação. Ou pode ajudar. E se tem erros, o intérprete — nós — que os corrijamos. Mas no Código que o Governo chama de novo há normas redundantes e inúteis. Há disposições que não fazem sentido. Há normas cujo sentido não se percebe. E nem se percebe se têm sentido. Há contradições insanáveis que quebram a coerência de outras normas. Nalguns casos, parece haver uma incapacidade em traduzir em letra de lei escrita o pensamento do legislador. Há normas que nos deixam dúvidas. Muitas dúvidas. E hesitações.

Dirá que são aspetos menores. Terá (alguma) razão. Poder-se-iam apresentar, em concreto, variadíssimos exemplos.

Mas há também — e bem — ­aspetos conseguidos. Muito conseguidos. Soluções equilibradas e bem pensadas. Soluções que se aguardavam. Soluções justas. Soluções prudentes. V. Exª. deve ser felicitada por isso. O mérito é todo seu e do Governo. Mas Senhora Ministra da Justiça, como diz o Poeta, “Como é que dá para entender que a gente mal nasce e começa a morrer?”.

Não deixa de ser irónico pensar que o novo CPA mal nasce comece logo a morrer... E ele é tão importante! E não gostaríamos que ele fosse atacado por morte súbita.

José Fontes

Professor Universitário

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