Cancro: Recuperar uma vida normal

Marisa, Rosa e Cristina estão num programa inédito de reabilitação e reintegração de pessoas que vivem com cancro. O Centro de Reabilitação Profissional de Gaia e a Liga Portuguesa Contra o Cancro estão juntos nesta caminhada que reajusta projectos de vida. Hoje é Dia Mundial do Cancro.

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Rosa, Cristina e Marisa (da esquerda para a direita) fazem parte do projecto inédito que quer facilitar um regresso à vida profissional Adriano Miranda

Aos 14 anos, estava atrás de um balcão de uma padaria que não parava de crescer e onde chegou a encarregada. Geriu 25 lojas, era responsável pela qualidade e por recrutar e formar funcionários. Aos 17, estava numa cama de hospital quase sem se mexer. Recuperou, voltou ao trabalho, mas o tumor ósseo regressou-lhe ao corpo. Aos 28 tinha uma pensão de invalidez. “Não aceitei muito bem ter de ir para a reforma aos 28 anos”. Marisa Silva tem agora 36 anos. Arrumou muita coisa na sua cabeça e não quer perder tempo. “Vou voltar a fazer o que fazia, quero voltar a ter a minha casa, a minha independência e trabalhar é o que me realiza”. Em Março de 2015, entrou num programa de reabilitação e reintegração profissional do Centro de Reabilitação Profissional de Gaia (CRPG) e da Liga Portuguesa Contra o Cancro. Um projecto de intervenção inédito para pessoas em idade activa e com doença oncológica que precisam de apoio para aceder, manter ou regressar ao mercado de trabalho. Arrancou há um ano, tem 18 pessoas, e é ajustado à medida de cada um. Cada caso é um caso. 

Marisa Silva frequenta o curso de Técnico de Apoio à Gestão para preencher com teoria o que sabe na prática. O seu plano de intervenção inclui sessões de fisioterapia e intervenção psicológica. E não será a incapacidade de 72% escrita num papel que lhe travará a vontade. “Tudo se consegue, basta querer”. Onde pensa estar daqui a um ano? “Num grande centro hoteleiro ou de restauração. Internacional, se possível”, responde sorridente. “Quero voltar à vida que já tive”.   

É dia de teste no seu curso, Marisa ainda não almoçou, conversa sem olhar para o relógio. Sabe bem o que quer e o caminho para lá chegar. “Sinto-me uma felizarda em relação a tanta gente que vi. Foi uma aprendizagem muito grande, sinto-me doutorada em cancro”. Durante um ano, esteve internada na Liga Portuguesa Contra o Cancro a fazer tratamentos e, nessa altura, mobilizou os doentes para os trabalhos manuais. Depois dos tratamentos, pelas cinco da tarde, juntavam-se para fazer flores com cápsulas de café, pétalas com colheres de plástico, centros de mesa com troncos de madeira. A sua força não passa despercebida. Foi eleita presidente do Clube do Cliente do CRPG que escuta quem frequenta a instituição e faz chegar opiniões e sugestões à direcção.

O cancro nos ossos não lhe deu tréguas e a dor crónica acompanha-lhe os dias e as noites. Toma 16 comprimidos por dia, há dois anos que toma morfina, usa uma canadiana e tem uma ortótese no pé esquerdo que não mexe. “Faço fisioterapia todos os dias para largar a canadiana e estar apta fisicamente para o trabalho, mas sem a dor estar controlada vai ser difícil”. Há quase dois anos que espera pela cirurgia que lhe colocará dentro do corpo um neuro-estimulador. Sabe que terá de ir ao bloco duas vezes e espera ansiosa pela operação que lhe permitirá, se tudo correr bem, controlar a dor. A data tarda em ser marcada. “Sei que há uma luz ao fundo do túnel que está bloqueada por burocracias”. Ainda assim, espera que o tempo jogue a seu favor e que quando terminar o curso no CRPG já tenha sido operada e esteja pronta para arregaçar as mangas. 

Marisa é de Santo Tirso. Era atleta federada e num treino, aos 17 anos, a perna esquerda prendeu. As dores eram intensas, fez raio-x, foi medicada. Uma nódoa na anca, problema de nascença, seria a causa das dores. Não era. O corpo deu sinal pouco depois, ao pegar no tabuleiro do pão, baixou-se e nunca mais se levantou. Exames mais exames e um diagnóstico terrível comunicado à mãe: um tumor de grandes dimensões alojado na coluna, dois meses de vida. Foi levada para o Hospital de São João, no Porto, sem saber o que se passava e a ver lágrimas e lágrimas em quem a visitava. Durante duas semanas, esperou pelo resultado da biópsia e ficou a saber que tinha lesão óssea tumoral. Ficou tão revoltada que exigiu que os médicos, a cada momento, lhe contassem o que se passava. Ficou nove meses no São João, cinco desses meses esteve deitada sem se poder sentar. Tratamentos, radioterapia, fisioterapia, e o corpo recuperou para voltar ao trabalho. Dez anos depois, a doença voltou e nunca mais trabalhou. A dor crónica não lhe dá sossego.

Rosa Pinto tem 50 anos no bilhete de identidade. “Eu não tenho 50 anos, o invólucro pode dizer que sim, mas por dentro não tenho 50 anos”, garante. Por dentro tem vontade de voltar a meter os números nos sítios certos, mexer na papelada. Quer regressar ao mercado de trabalho, arranjar emprego na área de contabilidade e está a fazer por isso. Desde Março do ano passado que frequenta um curso de assistente administrativa com dupla certificação no CRPG que lhe dará o 9.º ano e lhe permite actualizar conhecimentos. É do tempo de escriturar os livros à mão. “Gosto de estar sempre a aprender, saber coisas novas, não dá para ficar parada”. Tem o 6.º ano, trabalhou cinco anos num gabinete de contabilidade, ia fazer 23 anos de casa como assistente administrativa numa empresa de produtos de pastelaria e padaria quando uma redução de pessoal lhe impôs a condição de desempregada. Em Outubro de 2012, foi dispensada, em Abril do ano seguinte era-lhe diagnosticado cancro na mama. Na ponta dos dedos, sentiu que havia alguma coisa de errado. Tinha 48 anos. Exames, exames, a confirmação do pior receio, adiou a notícia a dar à família –só o marido a acompanhava no seu sofrimento. A filha estava a acabar o curso, era o aniversário do marido, aniversário de casamento.

“Uma mulher sem cabelo é um bocado esquisito, é muito frio”, diz. Iniciou a quimioterapia para ver se o nódulo diminuía e não precisaria de cirurgia. Em vão. “Antes da oitava sessão o médico diz-me que tinha aparecido outro nódulo. Foi um balde de água fria, pus em causa a quimioterapia. Se era para diminuir como me surgia outro nódulo?”. Fez o que tinha de ser feito. Havia uma escolha que não lhe saía da cabeça: “Ou cruzo os braços e antecipo a morte ou arregaço as mangas e vou para a guerra”. Escolheu a segunda.

O cancro travou-lhe a procura de novas oportunidades profissionais, mas não por muito tempo. Acabou os tratamentos, decidiu dar um rumo à sua vida. “Queria alguma coisa para ocupar o tempo. A certa altura, já nem as paredes suportava”. Com a situação clínica estabilizada, contactou o gabinete de inserção profissional da Junta de Arcozelo e dali passou para o CRPG, iniciando um percurso de reabilitação psicossocial e profissional com um ano de formação, para desenvolver qualificações escolares e profissionais, e seis meses de estágio. Está contente com as aulas que lhe ocupam os dias das nove às cinco. “Nada me impedirá de concretizar o meu sonho”, garante. A 5 de Maio termina a parte da formação e está preparada para a luta.

Percurso mão na mão 
“Não estou totalmente desanimada, quero reencontrar o meu caminho”. Houve, porém, um tempo em que abria a porta de casa e não conseguia sair. Tinha medo de desmaiar, de se sentir mal, de o chão fugir-lhe dos pés. O stress pós-traumático atordoava-lhe a vida. Cristina Marques confessa que não é a mesma e isso não tem de ser necessariamente mau. “Não sou a pessoa que era, tenho outras limitações, mas outras visões da vida”. Insistir e não desistir tornou-se o seu lema. Tem 52 anos, uma licenciatura em contabilidade, experiência como técnica administrativa, técnica de recursos humanos, professora de Contabilidade e Informática no Secundário. Neste momento, está a aprender a tocar viola na Universidade Sénior de Canelas, um sonho antigo. Tem jeito para a cozinha, faz bolos e salgados quando lhe pedem.

Em 2011, foi-lhe diagnosticado cancro colo-rectal. Passou por todas a fases, foi operada, iniciou um ciclo de quimioterapia injectável “10% mais barata”. “Não aguentei essa parte. Num total de 12 ciclos, só fiz dois. No terceiro, assinei um papel para desistir da quimioterapia”, conta. Tinha momentos de pânico, sentia que a cabeça não estava bem, não saía de casa. “O corpo não funcionava”, recorda. Passou para a quimioterapia oral e o corpo começou a responder. O período de quimioterapia injectável endureceu-a, os cálculos da poupança apertaram-lhe o coração. “Os avanços tecnológicos não são acompanhados pelos avanços políticos”, comenta. Viveu tudo sozinha, sem rectaguarda familiar. Uma vizinha deu-lhe apoio, ajudava-a a entrar na ambulância quando não conseguia andar e tinha de ir aos tratamentos.

Nesse tempo de baixa hospitalar, mais um balde de água fria, a empresa onde trabalhava como técnica administrativa entrou num período de insolvência. Ficou sem trabalho enquanto combatia a doença. Na Liga Portuguesa Contra o Cancro falou-se no projecto do CRPG. “Estava um bocado desorientada em termos de procura de trabalho”. Desde Setembro do ano passado que está a ser acompanhada na procura de emprego que inclui o desenvolvimento de competências de empregabilidade, informação sobre medidas de apoio ao emprego e mediação com potenciais empregadores. Tem indicações sobre apresentação do currículo, postura a adoptar nas entrevistas. “É uma procura incessante, um pouco desgastante, mas temos de superar”. Sente-se mais confiante e está em alerta. “O bicharoco que me atingiu pode, a qualquer momento, manifestar-se, mas por enquanto está controlado”.

Trabalho mão na mão
No final de 2014, o CRPG e a Liga Portuguesa Contra o Cancro assinaram um protocolo para colocar em marcha um programa de reabilitação e reintegração de pessoas que querem reorganizar o seu projecto de vida. A intervenção arrancou no início de 2015 e contempla várias etapas que envolvem um trabalho de parceria com médicos assistentes e estruturas de saúde, famílias, entidades empregadoras. É um percurso feito a diversos níveis e em que se avalia os impactos da doença oncológica na vida da pessoa, os potenciais de reabilitação e reintegração e se define um plano individual que é implementado através de activação psicossocial, requalificação profissional, identificação de novas oportunidades de trabalho, entre outras acções. Retira-se o enfoque na doença, trabalha-se a ansiedade, reestabelece-se o sentido de normalidade.

O CRPG e a Liga estão a fazer o que não era feito. Jerónimo Sousa, director do CRPG, fala num trabalho mão na mão, terapêutico, num percurso acompanhado. “Para cada situação é feita uma avaliação individualizada com as pessoas, com as estruturas de saúde. Mesmo quando começa não é igual para todos. Temos um dispositivo metodológico e uma equipa técnica que é mobilizada à medida das necessidades de cada situação e de forma dinâmica”, refere. Neste programa de apoio no retorno ao trabalho após cancro, o apoio especializado para reestabelecer ou reorganizar projectos de vida é fundamental. A Liga sinaliza os casos, que também chegam por outras vias, e o CRPG entra em acção.

“A experiência do cancro é uma das experiências humanas limite que nos põe face a uma iminência da morte. Mesmo que depois haja uma recuperação da situação, é um evento profundamente traumático que dificilmente alguém consegue gerir bem sozinho, mesmo que se tenha uma boa rede familiar, uma boa rede de amigos, uma fortíssima personalidade psicológica”. Jerónimo Sousa garante que em termos de políticas públicas “é mais fácil e menos custoso reabilitar as pessoas do que assisti-las”. “Para as pessoas que na sequência de uma doença ou acidente, que provocam alterações graves na sua funcionalidade, que põem em causa o seu projecto de vida, e se perguntam à saída do hospital ‘e agora o que faço da minha vida?’, não há resposta. E isto no século XXI não é, de todo, compreensível e ajustado”, diz.

Respostas para todas as perguntas
Hoje é Dia Mundial do Cancro. Em Portugal, o cancro é a segunda causa de morte e a primeira de morte prematura abaixo dos 65 anos com uma percentagem de 31,7%. Neste momento, estima-se que em 2025 uma em cada três pessoas tenha cancro, em 2050 uma em cada duas e três em cada cinco terão dois ou mais cancros. Em todo o mundo, todos os anos, cerca de oito milhões morrem com cancro.

O Dia Mundial do Cancro é assinalado esta quinta-feira com várias iniciativas. Os núcleos regionais da Liga Portuguesa Contra o Cancro desenvolvem actividades de sensibilização e educação. As mensagens são para reflectir. “Ajudar o doente oncológico a adaptar-se às alterações na sua vida vai contribuir para a sua qualidade de vida” é um dos exemplos.  

O Instituto Português de Oncologia (IPO) do Porto, numa iniciativa conjunta com a Irmandade dos Clérigos, responde a todas as perguntas. Hoje, pelas 18h15, na Igreja dos Clérigos, clínicos do IPO-Porto de várias áreas da doença oncológica estão disponíveis para tirar todas as dúvidas. “O que quer saber sobre cancro? O IPO-Porto responde!” é o nome da tertúlia aberta à população e que pretende sensibilizar para a importância da prevenção, controlo dos factores de risco e promoção de estilos de vida saudável. “É nosso dever ir ao encontro das pessoas, contribuir para o aumento da literacia da população sobre esta patologia e promover mais oportunidades de acesso ao melhor tratamento”, sublinha, em comunicado, Laranja Pontes, presidente do conselho de administração do IPO-Porto. Às 18h, há um pequeno concerto de órgão de tubos e às 19h30 uma visita à Torre dos Clérigos. A entrada é livre. 

 

 

 

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