Bifes de vaca

Peço desculpa se, ao contrário do que é habitual nos meus textos, este não for de extraordinário interesse, mas é uma nota de viagem e, ao mesmo tempo, um desabafo. E a história começa assim: fui agora a Berlim a convite do Dildile Literaturfestival para falar do meu livro A Instalação do Medo.

Gostei muito e, como de costume, tentei fazer um bom trabalho. O sr. embaixador de Portugal teve até a iniciativa de, já que eu estava lá, me convidar para uma pequena palestra no espaço mesmo da nossa embaixada, o que fiz com gosto, porque gosto de ser bem tratado pelos meus representantes lá fora e, se puder, de os tratar também bem. Aqui algumas pessoas perguntam-se: "Então tu dizes mal do governo e depois queres batatinhas?"

Sim, quero, e tenho direito a elas (às batatinhas). Porque governo e cidadãos submetidos estamos, desde 25 de Abril de 1974, às regras do jogo democrático, e a crítica é livre, pelo menos em teoria, e hoje ninguém se choca que Pessoa diga "Minha pátria é a língua portuguesa" e não "Minha pátria é o programa eleitoral do PSD" (que, como se sabe, está desde a primeira hora a ser descumprido).

O que me doeu foi, em conversa casual com um colega alemão, saber que há anos me iam convidar para um debate sobre literatura & ópera (sou, creio, um dos nossos autores com mais experiência na área) e uma alta figura do Estado... vetou o meu nome. Depois, a duas semanas do encontro, mudou de ideias, mas então já era tarde para, em cima da hora, a organização alemã me incluir no programa. É triste, é feio, e menoriza sobretudo a quem assim se comporta. (A mim tirou-me uma oportunidade profissional, mas a situação não me humilha enquanto pessoa.) Há já décadas, um secretário de Estado queixava-se: "Então eu vou dar dinheiro a quem me ataca?" Sim, meu caro, porque o dinheiro não era teu – os tempos em que Luís XIV dizia "La France c'est moi" já lá vão, ou já lá deviam ir. Tenho mais histórias assim – e há quem as tenha piores. Posso dizer a frase? Retiram-nos valor. E depois morremos e é tarde para nos arrependermos, sacaneadores e sacaneados.

Também há uns anos valentes, um Rapaz de Poder (literário, o mais fofinho de todos os poderes) pediu-me desculpas por ter sido injusto comigo ao longo de duas décadas. Conto a história por o seu pedido ter sido em público, salvo erro na Biblioteca de Santa Maria da Feira. Aceitei-as. Como não aceitar? Deus abençoou-me com um coração mole, para compensar a maldição da língua afiada. E não havia nada a dizer, o mal estava feito. E vai continuar a ser feito. Há uma anedota estúpida da qual gosto muito: dois bois estão a caminho do matadouro e um não pára de chorar. "Por que estás a choramingar, pá? Já sabias que este era o nosso destino." Responde o lacrimejante: "Não é isso. É que depois de morto me vão chamar vaca..."

Pois o drama do intelectual português é que, depois de morto, os mesmos que o tramaram vão lacrimejar que "foi um valor que se perdeu". E comer-lhe o bife.

Docente universitário FCSH-UNL

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