Autoridade fugaz

Ele convocou-a quatro vezes seguidas, quase sem respirar: “Fernanda Maria Silva Oliveira Costa. Fernanda Maria Silva Oliveira Costa. Fernanda Maria Silva Oliveira Costa. Fernanda Maria Silva Oliveira Costa.” Chamou-a assim, pelo nome completo, impositivo, a voz grossa a ecoar na dormente sala de espera.

Como todos nós, os expectantes, Fernanda estava desatenta. Aguardava há tanto tempo, que naturalmente entretinha-se com outra actividade que não fosse olhar para o tecto. Só na segunda rajada de quatro chamadas sucessivas é que percebeu que era com ela. Saltou da cadeira e precipitou-se para o balcão, onde o dono do vozeirão interpelou-a, fulminando-a com o olhar:

— Fernanda Maria Silva Oliveira Costa?

— Sim, sou eu — balbuciou ela.

— Aqui está — disse o funcionário, solene e impassível, estendendo-lhe um papel com os devidos selos, carimbos, assinaturas e demais adornos burocráticos de veracidade.

Estava no pleno comando do seu instante de protagonismo, que exercitava com algum prazer, ainda que se tratasse de uma simples entrega de documentos. Afinal, o funcionário era o elo de ligação entre dezenas de pessoas que estavam ali a tratar de papéis e o misterioso mundo por detrás de uma porta, onde tudo se decidia. Verificava as senhas, ouvia os pedidos, recebia os formulários e levava-os lá para dentro. De tempos em tempos, emergia da mesma porta com um maço seja lá do que tivessem solicitado, invocando cada requerente pelo nome, sempre em quatro repetições retumbantes.

Há poucos locais onde estes fugazes júbilos de autoridade são tão intensos como nos serviços públicos ou privados onde desperdiçamos parte do dia só porque a presença física do cidadão ainda é exigida, mesmo tendo o telefone sido inventado há um século e meio e a Internet há 30 anos.

Naquele dia, eu, a Fernanda e muitos outros fomos vítimas desta necessidade infernal do corpo presente. E onde os corpos são muitos e a demora é grande, há sempre alguém que, mesmo no inocente cumprimento da sua missão, acaba por ter o ego massajado por uma circunstancial dose de poder. É normal, somos todos humanos. 

Eu vinha já de outro serviço, onde o acesso aos balcões era intermediado por um funcionário de uma empresa de segurança, que possuía o controlo absoluto sobre o dispensador de senhas — situação inexplicável, mas comum.

— É para quê? — perguntou-me.

Expliquei-lhe para o que é que era.

— É a senha C — disse e carregou no botão da máquina sob seu monopólio, entregando-me o papelinho e sugerindo-me algo que jamais me passaria pela cabeça:

— Aguarde até chamarem o seu número.

Estava assim fixada a fronteira entre o dominador e o dominado, ambos pessoas de bem, mas uma das quais a deter plena soberania sobre uma tirinha de papel. Por essa magna faculdade, incutia em todos que se aproximavam o temor de não ultrapassarem aquela primeira etapa da via sacra burocrática. Uns gaguejavam, outros tentavam conquistar-lhe simpatia e alguns descreviam complexas histórias para justificar por que ali estavam.

A mim, de nada me valeu a senha. Para resolver o que eu tinha de resolver, era preciso estar ao mesmo tempo em duas repartições distintas, tarefa interdita pelas leis da física, mas por vezes requerida na vida real.

Corri de uma para a outra, antes que fechasse. Era tarde, já não havia ninguém. A não ser o homem da voz grossa, que na ausência de nomes para anunciar, varria o chão.

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