Assustador!

Seria assustador aceitar que os enfermeiros são os únicos profissionais auto regulados em que o Estado, por razões economicistas, entende que o estágio é um gasto e não um investimento.

Depois de aprovada e publicada a Lei nº 156/2015, de 16 de setembro, que altera pela segunda vez o Estatuto da Ordem dos Enfermeiros (OE) é tempo de refletir, de não baixar os braços e de não permitir que pelo caminho fiquem as decisões e os planos de desenvolvimento de uma profissão que desde sempre luta pelo merecido reconhecimento.

Apesar do sabor amargo que invade cada um daqueles que, desde 2007, trabalharam na construção de um novo paradigma de desenvolvimento profissional do exercício da enfermagem em Portugal, há que olhar para o atual Estatuto e identificar com exatidão as oportunidades e as ameaças.

Nesta Lei, aprovada à pressa, sem o necessário debate e negociação com os enfermeiros, identifico duas matérias que inexplicavelmente foram tratadas de modo “atabalhoado” e com enorme desrespeito pelo exercício profissional e direitos dos enfermeiros. Refiro-me à manutenção da atribuição de título de enfermeiro por um processo meramente administrativo e a limitação das áreas de especialização em enfermagem às seis especialidades que existem há mais de 25 anos.

Só pode tratar-se de um grande equívoco, de uma falta de consciência do impacto negativo, que uma alteração imponderada como esta pode determinar no futuro da enfermagem portuguesa e consequentemente na sociedade portuguesa.

Não posso acreditar que a mais elevada classe política deste país pretenda limitar o desenvolvimento dos enfermeiros e impedir uma profissão de responder a novas necessidades do cidadão. Seria assustador!

Seria assustador que os enfermeiros fossem olhados como profissionais incapazes de adquirir e consolidar novas competências, de reforçar a sua capacidade de intervenção e de desenvolver a oferta de cuidados de enfermagem adequada às reais necessidades de saúde da população. A possibilidade da OE definir novas competências específicas, organizá-las em especialidades e reconhecê-las, constitui a garantia de que a Enfermagem é uma ciência, disciplina e profissão em permanente desenvolvimento e com capacidade para responder às emergentes necessidades de saúde. Quartar esta capacidade à OE, mesmo que temporariamente, é privar o sistema de saúde e os cidadãos de enfermeiros especialistas com a diferenciação adequada.

Por ventura, existe alguém com responsabilidade politica e administrativa neste país que, duvide da necessidade de enfermeiros especialistas em saúde familiar, ou em pessoa em situação crítica ou ainda em doença crónica e paliativos?

Seria assustador reduzir o universo da especialização em Enfermagem a seis especialidades, vedando a centenas de profissionais o direito de verem reconhecidas as suas competências diferenciadas, de as assumirem perante a sociedade num quadro de regulação profissional que protege o cidadão.

Seria assustador perceber que os enfermeiros são vistos pelos responsáveis políticos deste país como pertencentes a uma casta diferente das restantes profissões de saúde autorreguladas. E que, por isso, não lhes são aplicadas as mesmas regras, nem reconhecido o direito a acederem à profissão através de um estágio. A existência de um período de estágio de acesso ao exercício profissional autónomo e independente é o mecanismo que as profissões reguladas utilizam para garantir à sociedade qualidade e segurança e é imprescindível na defesa dos interesses dos beneficiários dos cuidados.

Seria assustador aceitar que os enfermeiros são os únicos profissionais auto regulados em que o Estado, por razões economicistas, entende que o estágio é um gasto e não um investimento na qualidade dos profissionais e do próprio sistema de saúde. Serão os médicos, os psicólogos e os nutricionistas que têm uma formação universitária tão deficitária que não podem exercer de modo independente sem realizar um estágio?

E é porque entendo que se trata de um lamentável equívoco de uma classe política que tem deveres para com os cidadãos e os enfermeiros, que me proponho a iniciar, desde já, diligências para corrigir o que considero ser uma “aberração legislativa”.

Candidata a Bastonária da Ordem dos Enfermeiros

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