As secretas e a nossa vida privada

A reserva da intimidade da vida privada “protege o indivíduo do perigo de sucumbir física e psiquicamente ante a avalanche de ruídos e estímulos da sociedade moderna”. Devolve-nos o direito à solidão de que falava Miguel Torga.

Julgamentos na rua, vigilâncias policiais, câmaras de videovigilância, escutas telefónicas, conteúdos de mensagens telefónicas (SMS) gravados, facturações detalhadas, vontas bancárias e cadastros fiscais expostos, correio electrónico. Tudo vigiado. Armazenado por tempos infindos. Ignora-se o destino e fins de tanto material. Como é usado. Policiamento, sempre mais policiamento.

Vida privada, familiar e íntima que se esfuma. Sem garantias. Nada se pode reservar fora dos olhares exteriores. Os direitos comunitários e constitucionais não são considerados. 

É a “segurança”! Ávida de mais instrumentos. Quanto mais lhe são fornecidos, menos seguro se sente o cidadão.

Pululam polícias de investigação criminal. Tropeçam umas nas outras. Polícia Judiciária, Guarda Nacional Republicana, Polícia de Segurança Pública, Policia Judiciária Militar, Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, Polícia Marítima. Os bancos, a seu modo, exercem funções policiais.  

A coisa sobe de tom. Sempre à custa das liberdades e direitos individuais. 

O Governo aprovou uma proposta de lei que reforça os poderes dos serviços secretos em matéria de combate ao terrorismo. As operadoras  telefónicas, os bancos e os serviços fiscais ficarão obrigados a fornecer-lhes os dados de tráfego, bancários e fiscais que lhes forem requisitados. As razões são de robustecer as secretas com meios de prevenção e repressão daquele crime. A matéria é muito grave.

A juíza presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses desabafa: “Ninguém tem que saber com quem falo.” Voz autorizada na defesa dos direitos, liberdades e garantias. Vida privada e íntima.

Os poderes, confrontando dificuldades acrescidas, encontram invariavelmente a mesma saída. Comprimem ou eliminam direitos de cidadania. Protestam que é a defesa da liberdade que obriga a comprimir a liberdade. É um dado histórico. Nunca se preocupam em encontrar soluções alternativas, proporcionais e adequadas. Benjamim Franklin dizia que quem sacrifica a liberdade em favor da segurança não merece nem uma nem outra. As soluções compressoras ou limitativas são a sua ideologia. Gratuitas ou baratas oneram as operadoras telefónicas, os bancos, os serviços fiscais. O  contribuinte paga. Não implicam trabalho de investigação e estudo.

Essa panóplia de meios existe para investigação criminal.

Para prestar contas a serviços secretos administrativos dependentes do Executivo, dá que pensar. Telefone, conta bancária, folha fiscal dizem quase tudo sobre a vida privada de cada um. A vida privada entregue a secretas?

O Parlamento Europeu e a Comissão Europeia aprovaram a Directiva 2006/24/CE. Impunha aos Estados a aprovação de legislação para combate ao terrorismo e crime altamente organizado. As operadoras deviam armazenar, entre seis meses a dois anos, os dados de tráfego. 

Portugal cumpriu pela Lei nº 32/2008. Durante um ano, tudo quanto chega às operadoras é armazenado. À disposição das polícias para efeitos de investigação e repressão criminais.

Investigação de crimes de terrorismo, criminalidade violenta, altamente organizada, e outros muito graves. Compreende-se. Investigação de crimes graves.

O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) não compreendeu. Em Abril de 2014, julgou a Directiva inválida. Ofendia gravemente o direito à vida privada e ao sigilo sobre dados pessoais consagrados na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Os Estados que procurassem outra solução.

Ninguém se mexeu. Continua em vigor uma lei inspirada numa directiva inválida.

Os serviços de informação não têm competência para investigação criminal. O Governo pretende dotá-los de meios que o TJUE declarou inválidos na investigação criminal.

A pergunta é: que dirão o Tribunal Constitucional e de Justiça da União Europeia à proposta do Governo agora em discussão no Parlamento?

Procurador-geral adjunto

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