“As crianças dão ânimo. Sem elas a freguesia fica mais sozinha”

Em Baião, onde se situam 11 das 311 escolas com morte anunciada para Setembro, há duas aldeias onde o acesso aos novos agrupamentos escolares se faz por estradas que o gelo torna intransitáveis no Inverno. “É um suicídio”, diz o presidente da junta. “É um problema de orografia”, concorda o vice-presidente da câmara.

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Célia Belchior optou por transferir as suas duas filhas para o concelho de Mesão Frio Nélson Garrido

Da janela da sua casa, a mulher escorre desalento pela paisagem feita de casas encavalitadas num terreno todo ele feito de ladeiras. “São muito pequeninos para andar no meio dos grandes. Os grandes agora são muito mal-educados”. A sua janela fica a poucos passos da Escola de Barreiro, na freguesia de Teixeiró, uma das 11 escolas que vão fechar no concelho de Baião. Ela, que sendo de cá até vive em Lisboa a maior parte do ano, já não vai poder dizer como dizia: “Da janela da minha casa na aldeia ouço as crianças no recreio”.

Não chegavam a uma vintena as crianças que todos os dias subiam este caminho até à escola. É feito de asfalto e pó, mas um carro sobe sem dificuldades. De um lado casas, com rosas nas soleiras; do outro, figueiras, ameixoeiras e videiras já com cachos. Em baixo, Aurora Macedo, que interrompe o trajecto para falar com os jornalistas, muito mais razões tem para lamentar. “A minha Inês ainda é muito pequenina para andar por lá o dia todo. Vai sair de manhã e voltar à noitinha.”

Com sete anos, a mais nova dos quatro filhos desta mulher, frequentaria a Escola do Barreiro até ao 4.º ano, não fosse um decreto ministerial ter incluído este estabelecimento na lista dos 311 que, em 129 concelhos do país, já não reabrem portas em Setembro. “Aqui entrava às nove, saía às cinco e voltava para casa a pé”, conta Aurora. Se fossem cumpridas as orientações oficiais, Inês passaria a frequentar o centro escolar de Santa Marinha do Zêzere, a cerca de 16 quilómetros. Aurora não quer. “Eles dizem que põem um autocarro para levar as crianças. Mas e a gente?! Imagine que acontece uma desgraça e somos chamados à escola? Como é que chegamos lá?”

Autocarros da rede pública a ligar as duas localidades não há. Chamar um táxi custa “de 20 euros para cima”. A solução encontrada por Aurora foi pedir a transferência da filha para uma escola do município vizinho, Mesão Frio. “Estamos aqui mesmo chegados. A câmara diz que vem buscá-los de graça e a gente precisando tem vários autocarros para lá durante o dia. E, se acontecer uma coisa de aflição, depressa nos pomos lá a pé: uma meia horinha.” Remediada a logística, sobra a tristeza de Aurora. O pai emigrou, a filha mais velha também. Este lugar está cada vez mais perto de se transformar numa daquelas aldeias atravessadas por emigrantes no Verão. Desce-se e sobe-se por caminhos, passa-se a extensão do centro de saúde e o jardim-infantil (este ainda aberto mas não se sabe por quanto tempo, porque o Ministério da Educação o que fez foi adiar para segundas-núpcias a reconfiguração da rede do pré-escolar) e eis-nos na Teixeira. Era outra freguesia mas fundiu-se com Teixeiró, nas últimas autárquicas. A escola daqui, a da Rua, também tem morte anunciada. É um edifício antigo mas preservado, com vedação de rede branca e um muro de pedra de onde pendem chorões. A esta hora, meio-dia, o único sinal de vida à volta é a roupa a dançar nos estendais. Segue-se pela estrada principal e, poucas passadas depois, vai uma mulher na berma da estrada com duas miúdas no encalço, todas carregadas com vasos. Nem de propósito:

- Foi a professora que mos deu. Como já não volta a abrir, as plantas iam ficar para morrer. Mete cá uma tristeza. É uma pouca-vergonha, isto. As crianças estavam aqui bem. Vinha uma carrinha trazer o almoço e, qualquer coisa que acontecesse, a gente punha-se logo na escola.”

Célia Belchior, 28 anos, marido emigrado no Luxemburgo, não conduz. E quando lhe puseram a hipótese de transferir as duas filhas de nove e seis anos para Santa Marinha do Zêzere, respondeu que não. “É uma estrada ruim, perigosa”.

No Inverno, acontece a estas estradas que ziguezagueiam a serra do Marão, que ligam as pouco mais de 20 mil pessoas de Baião, ficarem interditadas por causa da neve e do gelo. No início do século passado nasceu aqui ao lado, em Gestaçô, Soeiro Pereira Gomes. Mas, como o escritor, muitos foram abandonando estas paragens. No último período censitário, entre 2001 e 2011, Baião perdeu 1500 habitantes.

“Aqui o trabalho faz-se ao cabo. É sujo. O campo não dá nada”, sentencia Maria Rosa Mendes, que, entretanto, se junta à conversa. Tem 50 anos, galochas verdes, bata castanha. “No meu tempo, havia três professoras de manhã e outras três à tarde. Agora já se ouve dizer que vão fechar o centro de saúde. E empregos para os que cá ficam?”, indigna-se.

É Maria que aponta uma outra mulher, que, a algumas dezenas de metros, sulfata videiras.

Armandina Silva, 36 anos, foi auxiliar na escola, a troco de receber o rendimento social de inserção. “Limpava a escola, dava comida às crianças”. Foi dispensada. “Depois disso fiz uma formação para auxiliar idosos”. Longe de imaginar que dali a poucos meses a escola estaria a acolher velhos. “Há um pré-acordo com a câmara para transformamos o edifício da escola num centro de dia”, diz Leonido Ribeiro, presidente da União de Freguesias de Teixeira e Teixeiró. Foi a única questão em que houve acordo. Quanto ao resto, só revolta. “Bati-me para que deixassem pelo menos uma das escolas, juntando as crianças lá, mas negaram-me essa pretensão.”

Para o autarca, não faz sentido que as crianças sejam deslocadas para Santa Marinha do Zêzere. “Não só pela ausência de transportes públicos, mas porque andar numa carrinha a transportar crianças naquela estrada é um suicídio. A probabilidade de haver um acidente é muito grande.” Porque os pais têm consciência disso, Leonido teme que o fecho destas escolas redunde “numa deslocação da massa humana para fora da freguesia”.

Pela soma de argumentos percebe-se melhor por que é que na carta educativa que a Câmara de Baião aprovou em 2006 se previa o encerramento de muitas das 38 escolas então existentes, e a consequente transferência dos alunos para os três novos centros escolares, mas a manutenção de um pequeno pólo escolar em Teixeira/Teixeiró, a somar-se aos outros dois pólos entretanto construídos e a funcionar. “Por força da especificidade geográfica, nas fraldas do Marão, e para não obrigar os alunos a percorrer aquela que em invernos rigorosos é a estrada que mais rapidamente fica intransitável”, explica o vice-presidente da câmara, Paulo Pereira.

Das suas palavras não ressoa nenhum laivo inflamado a propósito do desaparecimento da presença do Estado no interior do país. Alega o Ministério da Educação que a integração das 311 escolas em centros escolares se faz em nome dos alunos. “Estarão integrados em turmas compostas por colegas da mesma idade, terão acesso a recursos mais variados, tais como bibliotecas e recintos apropriados a actividades físicas, e participarão em ofertas de escola mais diversificadas”, lê-se no fax que chegou às autarquias na madrugada de 23 para 24 de Junho.

Tudo argumentos aos quais a actuação da Câmara de Baião se tem mostrado sensível nos últimos anos, segundo o vice-presidente. “Quando chegámos, em 2006, Baião tinha 38 escolas. Como não havia refeições na esmagadora maioria, não havia escola a tempo inteiro, o que significa que estes alunos estavam num plano de desigualdade grande e com turmas que somavam alunos de diferentes anos”.

Feito o diagnóstico, o reordenamento da rede escolar avançou. “Logo em 2007 conseguimos que todas as crianças tivessem refeições. Implementámos o transporte escolar, o que foi difícil porque estamos a falar de 526 lugares com uma orografia e uma rede viária complexas. Conseguimos reduzir o abandono escolar de 6,3% para 1,9%. E a secundária de Baião já aparece entre as melhores nos rankings das escolas. Fizemos isso tudo, percebemos que há escolas que têm que fechar, mas o Governo deixou-nos ficar mal agora porque, em relação ao pólo de Teixeira e Teixeiró, deu o dito pelo não dito”.

Em muitos dos municípios afectados, o anúncio foi seguido de revoadas de protestos. O município de Cuba respondeu com uma providência cautelar. Guimarães, Amarante e Aguiar da Beira idem. Celorico da Beira queixou-se da falta de dinheiro para assegurar o transporte das crianças.

O secretário de Estado do Ensino e da Administração Escolar, Casanova de Almeida, reconheceu depois que só houve acordo para o encerramento de 67,5% das 311 escolas. E, dias depois, o ministro Nuno Crato procurava esvaziar a polémica garantindo que as autarquias serão apoiadas no pagamento da factura relativa ao transporte escolar.

Mas não é isso que preocupa Baião. Ao argumento da “efectiva igualdade de oportunidades” para todos os alunos, habitantes como Maria Goreti retorquem: “Mas será mesmo verdade que os nossos filhos aprendem melhor em turmas de 30 alunos do que em turmas de 15? E aprendem melhor se tiveram que andar hora e meia de autocarro todos os dias entre a casa e a escola?!”, indigna-se ao balcão do seu café, em Teixeiró.

Um relógio na parede a imitar o tampo de uma pipa, uma estátua de Stº António posta num mini-altar, a janela a abrir-se para a encosta a perder de vista. Quase se podia espreitar daqui a tristeza a querer instalar-se no olhar de Aurora Macedo que continua a desfiar conversa com a vizinha, ainda à janela. “As crianças dão ânimo. Sem elas, a freguesia fica mais sozinha.”, remói. A vizinha condói-se e antecipa saudades dos dias em que “os miúdos se punham a conversar nos degraus” entre os intervalos das aulas.

Para Aurora, seria simples: “Se uniram as freguesias, juntavam também as crianças todas numa escola. Se assim fizessem, conseguíamos segurá-los aqui até ao 4.º ano, que eles depois sempre se defendiam melhor no recreio entre os grandes... Assim, olhe, a partir de Setembro, se quiser ver crianças aqui vai ter que vir ao sábado ou ao domingo.” E no resto do tempo? “É dar-lhes asas e aguentar, que havemos nós de fazer?”

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