As botas de José Sócrates

Os serviços prisionais carregam um pesado problema existencial. Labiríntica questão jurídica. José Sócrates persiste em reivindicar privilégios. Não assume a sua condição diminuta de preso preventivo. Com direitos. Mas sem direitos.

Estes são os que o digno director do estabelecimento diz que são. Não os da Constituição da República. Do Código de Execução de Penas e Medidas Privativas da Liberdade, do Regimento Prisional. Direitos são os que, por generosidade, o senhor director concede. Por circular ou despacho. Se entrarmos num estabelecimento prisional sem ninguém ter sentenciado que cometemos um crime, é como se o tivéssemos cometido. A apreensão das botas integra a punição.

O ex-primeiro-ministro não pode usar botas de cano curto. É ofensa grave ao Estado. Pode usar dois pares de sapatos de um artista de calçado. Miguel Vieira. Botas? Botas de cano curto da “boutique da Feira da Ladra” é que não. Desafia a autoridade do Estado .De quem manda nos presos. Desequilibra a ordem prisional. A disciplina do cárcere.

Preso deve ter sempre presente, em todos os momentos, que prisão é perda da liberdade. Inclusive a liberdade de escolha do tipo de calçado. Prisão preventiva é para sofrer antes da futura condenação. Assim é que o preso preventivo sente que não pode perturbar o inquérito. Nem continuar a cometer os crimes que ninguém julgou, com legitimidade, que cometeu. Botas perturbam o profícuo andamento do inquérito criminal. O seu êxito. São possível instrumento de crimes. Devem ser apreendidas. Mercadejadas em hasta pública.

Se o juiz disser que as botas podem ser usadas, a responsabilidade é dele. Um juiz, autorizando o uso de botas num estabelecimento prisional, é cúmplice dos crimes que, com elas, o preso vier a cometer. Um preso, este ou outro, bem pode persistir no uso das botas para cometer outros crimes. Para desarrumar a tranquilidade e ordem públicas. Ignoramos sempre os poderes mágicos das botas de um preso preventivo. Podem dissimular “botas de sete-léguas”. Instrumento que enrijece o perigo concreto de fuga.

Todos entendemos que a vivência prisional tem limitações próprias. O que preocupa não é a proibição de botas no “santuário” de Évora. O que preocupa é o simbolismo da proibição. Um Estado de Direito em que é preciso recorrer a um juiz para usar o tipo de calçado que se aprecia e tem. Isso é que preocupa. Trate-se de um preso qualquer. Imaginava um mundo prisional menos irracional e mesquinho. Em que, no mínimo, se respeitasse, ainda que também no mínimo, a dignidade da pessoa. Não conheço lei ou regimento que imponha o tipo de indumentária ou calçado nos estabelecimentos prisionais. Se há, não devia haver. Seja lá para quem for. Prisão ainda é Estado de Direito. Não vexame. Humilhação. Um preso é um homem. Não é um número. O “44” ou “45”! Reflexo de uma perversidade que não condiz com o modo de ser português.

Não concedemos ao Estado o poder/direito de nos humilhar. Em liberdade e na prisão. É repugnante. Como escreveu Miguel Sousa Tavares no Expresso, a questão é reprovável. Só quiseram atirar mais ao solo quem já lá está. Na lei, os presos mantêm todos os seus direitos fundamentais. A afirmação legal quer arredar os abusos e pequenos poderes que se exercem e praticam nos estabelecimentos prisionais. Que se ocultam atrás das grades. Leis humanistas abalroadas por poderes pequeninos. Arbitrariedades. O grau de civilização e cultura de um povo também se mede pela dignidade e humanidade com que olha e trata os seus presos.

O estabelecimento prisional de Évora é uma fortaleza inexpugnável na imensidão da planície do Alentejo profundo. Só acede quem consta do rol de visitantes. A Constituição da República e o Código de Execução de Penas não entram. Não estão na lista. As botas também não.

Procurador-geral adjunto

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