Arte e comunidade: o seu ADN é feito de encontros improváveis

Livro coordenado pelo líder Teatro do Oprimido do Porto e editado pela Fundação Calouste Gulbenkian tem 556 páginas, mas é uma “obra em aberto"

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Peça de teatro "Entrados", encenação de Hugo Cruz, com reclusos da cadeia de Custóias, apresentada em 2010 no Festival Imaginarius Paulo Pimenta/ Arquivo

Por que há agora tantos artistas interessados em trabalhar com diferentes comunidades? O que é arte e comunidade? Para que serve? Pode inspirar novas políticas? Qual é o lugar de quem participa?

A inquietação despontou em Hugo Cruz, director artístico da Pele - Espaço de Contacto Social e Cultural e coordenador do Núcleo de Teatro do Oprimido do Porto. Vendo que “as práticas artísticas comunitárias têm ganho força”, quis “parar e pensar nisso com pessoas que fazem trabalho na área”.

Desafiou 22 pessoas em Portugal, na Holanda, no Brasil, na Argentina, na Palestina. O resultado é o livro “Arte e Comunidade”, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian, que já foi apresentado no Porto e em Lisboa e este sábado, por volta das 18h, é apresentado no Festival de Teatro de Almada.

Não foi um acto fortuito. Há já alguns anos que, até por tantas vezes ser convidado para leccionar em estabelecimentos de ensino portugueses e estrangeiros, Hugo Cruz andava a tentar perceber que registos havia sobre arte e comunidade em Portugal. Concluiu que se faz muito, mas regista-se pouco e o pouco que se regista não está à mão de semear. “Esta informação deve estar acessível, deve ser discutida, deve ser uma base de trabalho para melhorar”, argumenta.

Eugene van Erven, da Universidade de Utrecht, um dos maiores estudiosos de experiências desta natureza, por exemplo, sustenta que as manifestações artísticas comunitárias estão ligadas ao local e ao regional, mas fazem parte de uma narrativa global que ainda não foi percebida.

Edith Scher, líder do grupo de teatro comunitário Matemurga, na Argentina, pergunta-se: “Que mudança pode haver no mundo, se persiste a convicção de que as coisas são como estão e nada se pode construir ou alterar?” Ela acredita que o teatro comunitário pode matar essa convicção.

Maceala Miranda, directora da escola profissional do Freedom Theater, no campo de refugiados de Jenin, nos territórios ocupados da Palestina, arrisca uma definição para arte e comunidade: “Trabalho com não profissionais ou com profissionais também envolvidos com o objecto de transformação social e comunitária.”

Para notar a diversidade de olhares basta folhear o livro (há um tipo de papel em cada capítulo, que, de resto, é desenhado por um designer diferente). As possibilidades, por vezes antagónicas, estão longe de terem sido esgotadas  e isso assume-se no objecto-livro: a lombada mostra a linha e a cola que une as 556 páginas, o que remete para a ideia de “obra em aberto”.

Portugal vive uma espécie de “boom”. No entender de Hugo Cruz, isso tem a ver com a nova “orientação das linhas de financiamento, que quase obriga os artistas a fazerem trabalho com comunidades”, mas não só. “O momento que estamos a viver, histórico, social, traz muita descrença às pessoas, mas também obriga a encontrar soluções”, comenta. “Quando entras num processo criativo a partir da realidade, estás a trabalhar uma realidade que não te agrada e a tentar encontrar várias soluções possíveis.”  

Já viu algo parecido noutros pontos do planeta, com destaque para a América Latina. Ocorre-lhe o exemplo da Argentina. Quando o país foi à bancarrota, em 2001,”o teatro comunitário multiplicou-se por cinco”. Portugal não foi à bancarrota, mas teve uma intervenção externa, empobreceu, perdeu apoios e serviços públicos, e ainda está a tentar perceber como há-de sair do buraco.

“As pessoas nalguns casos estão muito perdidas”, observa o psicólogo-encenador. A diferença em relação ao seu quotidiano familiar e laboral faz-se pelo simples “facto de, durante duas ou três horas por semana, terem um espaço no qual podem exprimir-se” e sentir-se “bem tratadas”.

Não acha que a arte pode salvar. Acha que a arte, em particular o teatro, pode ser um lugar de confrontação das pessoas consigo próprias. “A arte serve para as pessoas perceberem que podem ter algum poder na construção do seu destino”, diz. “Num processo colectivo, em que têm uma participação activa, sentem que as coisas podem ter princípio, meio e fim: no início, ninguém se entendia e toda a gente falava e não sei quê; a meio, já discutíamos uma ideia; no fim, conseguimos não só organizar essa ideia como mostrá-la e ainda por cima receber palmas, um bónus muito dignificante para quem nunca teve palmas na vida - e essas palmas são metafóricas.”

Impossível negá-lo. Os exemplos do livro apontam todos para aí: quem “mais adere a este tipo de projectos são pessoas com maiores carências ou dificuldades”. E a esse respeito, Hugo Cruz fala na vontade, que também é dele, de “trabalhar com populações com feridas abertas”, mas também de levar arte a quem vive arredado dela, de redefinir o que é arte, de pisar as fronteiras canónicas, de ir para lá delas.Conhece os riscos. No extremo, diz, estão “os pobres a fazer um espectáculo muito bonitinho e os ricos a bater palmas”. Também conhece formas de fintar esses riscos, não fossem os encontros improváveis o ADN das práticas artísticas comunitárias. “Sempre que possível estes projectos devem provocar encontros que não são usuais, juntar pessoas que, de outro modo, não conviveriam”, enfatiza.

Tem trabalhado com jovens em risco, reclusos, residentes em bairros crítico. Ninguém lhe diga que é perda de tempo, esforço, dinheiro. Aspectos que para outros podem ser insignificantes, para ele valem ouro. “Ainda hoje estive em Custóias. Um gajo fez uma letra de hip hop. Improvisou. Eu disse: Está brutal. Está espectacular. Ele disse: Estás na tanga comigo? E eu insisti: Ó pá, está incrível. E ele respondeu: Fogo, acho que nunca ninguém me tinha dito isso!”

A arte comunitária “não dá emprego, não põe comida na mesa”, mas pode provocar mudanças pequenas, subtis. Sobretudo, pode dar “um certo treino de pensar”. Naquelas duas ou três horas por semana, pode trabalhar-se o espírito crítico. “O ideal é que isso possa contaminar os outros contextos da vida das pessoas, que elas possam perceber que se ali dizem que acham que uma cena pode ficar melhor de outra maneira, na reunião de condomínio também podem ter opinião e exprimi-la.”

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