Área do cancro concentra metade dos ensaios clínicos em Portugal

Há 11.500 portugueses envolvidos em ensaios em curso que servem, sobretudo, para testar medicamentos novos.

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Cerca de 90% dos ensaios foram pedidos pela indústria farmacêutica. Os restantes 10% foram propostos por centros de investigação, como as universidades. Paulo Pimenta

O número de ensaios clínicos realizados em Portugal continua a ser baixo, mas o valor tem vindo a subir lentamente. No ano passado a Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed) recebeu um total de 127 pedidos e deu luz verde a 119. Em 48% dos casos as solicitações foram para testes na área oncológica — houve 61 pedidos.

Apesar de o número total de ensaios já ter sido superior noutros anos, o cancro nunca teve tanto peso. Até agora, 2006 tinha sido o ano com mais propostas nesta área, altura em que foram feitos 49 pedidos relacionados com oncologia num universo de 153 processos submetidos.

Além de desenvolverem a investigação em Portugal, o ensaios clínicos permitem também que os doentes tenham acesso a medicamentos inovadores quando ainda não estão no mercado. Por exemplo, muitos dos novos fármacos para o cancro são testados em doentes que não responderam bem aos medicamentos antigos e que sem o ensaio não tinham alternativa em tempo útil.

Segundo dados fornecidos pelo Infarmed, em resposta escrita ao PÚBLICO, há, actualmente, autorizações válidas para 322 ensaios clínicos a decorrer. “No âmbito do conjunto destes ensaios está prevista a inclusão de um número total, máximo, de 11.526 doentes.”

Em 2014, cerca de 90% dos ensaios foram pedidos pela indústria farmacêutica. Os restantes 10% foram propostos por centros de investigação, como as universidades.

Quase dois terços dos processos pretendiam testar produtos químicos e 28% produtos biológicos. O terceiro pedido mais frequente foi para ensaios que misturam a química com a biotecnologia. “A maioria destes ensaios clínicos decorrem paralelamente em centros de ensaios nacionais e em centros de ensaios de outros Estados-membros, uma vez que são, frequentemente, estudos multicêntricos internacionais”, explica ainda o Infarmed.

Aquém doutros países
Os dados do Infarmed indicam que 2006 foi o ano com mais autorizações — 147. A partir daí, o valor caiu progressivamente e só em 2012 começou de novo a subir (ver infografia). Em 2013 foram já 116, mas mesmo assim longe do que já se conseguiu há oito anos. No primeiro semestre de 2015 foram autorizados 57 pedidos.

Para um ensaio ser feito em Portugal precisa de autorização do Infarmed e de um parecer favorável da Comissão de Ética para a Investigação Clínica. A burocracia exigida pelo país e a demora nas autorizações, juntamente com os poucos incentivos à investigação e dificuldades na divulgação dos resultados, eram alguns dos problemas apontados para o baixo número de ensaios clínicos no país, segundo um estudo de 2013 da PwC, feito a pedido da Associação Portuguesa da Indústria Farmacêutica (Apifarma).

Com a mudança de algumas regras, no que diz respeito à demora, os dados do Infarmed indicam que há agora uma rapidez ligeiramente maior. Em 2014, o tempo médio de decisão foi de 33 dias, quando em 2013 era de 38 e em 2012 de 40 dias.

Quanto a áreas de investigação destes tratamentos e medicamentos, no ano passado, depois do cancro, o sector que registou mais pedidos foi o do sistema nervoso central, com 17 processos, seguido pelo sistema cardiovascular, com 12, e pelos anti-infecciosos, com nove. O primeiro semestre de 2015 teve um comportamento idêntico.

A oncologia encabeça sempre a lista de pedidos, desde 2006, mas o seu peso tem vindo a crescer — de 32% em 2006, para 38% em 2010, 42% em 2013 e 48% em 2014.

Mesmo com a recuperação, Portugal está muito aquém de outros países europeus, indicam os dados do mesmo estudo da PwC feito para a Apifarma. Em Portugal, o número de ensaios por cada milhão de habitantes é pouco superior a dez, quando outros Estados-membros, como o Reino Unido, têm 15 ensaios por cada milhão de habitantes. O valor é ainda superior na Holanda, com 32, na República Checa, com 33, na Áustria, com 40, e na Bélgica, com um valor recorde de 47.

Hospitais criam centros de investigação
O problema não está só no número, mas também na distribuição. Os ensaios clínicos dividem-se em quatro fases e é fundamental que um país consiga agarrar esta investigação logo de início porque, muitas vezes, se perde os testes iniciais já não volta a ser seleccionado.

Em Portugal, só 8% dos ensaios propostos foram para a fase um, a que costuma testar em pessoas saudáveis a forma como o tratamento é tolerado. Perto de 19% dos ensaios são de fase dois, quando se tenta perceber a eficácia do medicamento em quem tem mesmo a doença, e 63% de fase três, que compara a nova terapia com outra já existente no mercado ou com um placebo. Por fim, em fase quatro foram propostos menos de 10% de ensaios, sendo esta a fase em que se estuda em mais doentes a toma do medicamento durante mais tempo.

Numa tentativa de melhorar este cenário, no final de Julho dois dos grandes centros hospitalares de Lisboa anunciaram que vão avançar com centros de investigação próprios, que visam precisamente aumentar a capacidade de atrair ensaios clínicos.

O Centro Hospitalar Lisboa Norte vai abrir, no Hospital de Santa Maria, um grande centro que vai concentrar a sua actividade nas patologias em que há mais doentes em Portugal: oncologia, cardiologia, diabetes e neurologia. O Centro de Investigação Clínica vai funcionar nas instalações do Centro Académico de Medicina de Lisboa, contando com a colaboração do próprio hospital, mas também do Instituto de Medicina Molecular e da Faculdade de Medicina de Lisboa.

Também o Centro Hospitalar de Lisboa Central, que engloba os hospitais de S. José, Capuchos, Santa Marta, Curry Cabral, D. Estefânia e Maternidade Alfredo da Costa, avançou com um consórcio com a Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa para criar o Centro Médico Universitário de Lisboa. O objectivo é incentivar a investigação médica também em áreas como a oncologia, a cardiologia, a neurologia e a diabetes e conseguir atrair mais ensaios relacionados com estas doenças. As instituições não vão receber nenhum reforço de orçamento, mas os profissionais vão poder dedicar mais tempo a estes processos.

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