Aquacultura: Quando o peixe não vem do mar

Foto
Na Pescanova, cada pregado tem um bilhete de identidade: sabe-se quem são os pais, de onde veio, por onde passou e o que comeu Adriano Miranda

Do Governo aos cientistas, aquacultores grandes e pequenos, na nutrição e no ambiente, os actores do palco da produção de peixe em cativeiro em Portugal partilham consensos: a aquacultura veio para ficar. Mas ainda há medos, preconceitos. Agora só falta o consumidor.

Sábado, 16 de Janeiro, dez da manhã. Hipermercado Continente, Porto. Banca do peixe: robalo grande do alto mar fresco, 22,95 euros/kg; robalinho de aquacultura, 5 euros/kg.

Quinta-feira, 14 de Janeiro, dez da noite. Num restaurante em Lisboa, um grupo de amigos quer comer peixe.

Cliente — A dourada é do mar?

Empregado — Sim, sim. É selvagem.

Domingo, 27 de Dezembro de 2009, à revista Pública, um homem de Caxinas, bairro de pescadores de Vila do Conde, diz: “Aqui a pesca não tem dado. As redes dos barcos grandes apanham o peixe grande e o peixe pequeno. E também as regras de hoje têm taxas e mais taxas, e só se pode apanhar peixe numa determinada zona em que não há peixe.”

Falar hoje de aquacultura é falar destas três realidades: para o consumidor, a diferença de preço entre o peixe cultivado e o selvagem; o preconceito sobre um peixe que não é “do mar”; e a inevitável realidade de que as reservas de peixe no mar estão a esgotar-se.

Mitos e realidades

Há 30 anos, a “menina pescadinha” entrava na casa dos consumidores bradando o slogan: “Peixe congelado, alegria do cozinhado.” Há 30 anos, o pai de Maria Teresa Dinis, 64 anos, pioneira da aquacultura em Portugal, ia a Sesimbra buscar peixe fresco e dizia: “Peixe congelado, nunca!” O peixe congelado chega hoje a metade dos lares portugueses. A investigadora acredita que “este é o mesmo desafio que a aquacultura enfrenta”.

Diz-se que o peixe de aquacultura é mais gordo, que não sabe ao mesmo. Mas, em Portugal, contam-se pelos dedos as pessoas que já comeram salmão selvagem. As reservas do consumidor relativamente ao peixe produzido em cativeiro são enormes quando comparadas, por exemplo, ao camarão cuja produção é quase toda de aquacultura.

O consumidor ocidental tem um gosto requintado: por exemplo, não come carpa, peixe de água doce cultivado na China. Prefere o robalo, a dourada, o salmão (para não falar no bacalhau, no atum, e no alabote, consumido nos Estados Unidos, Canadá e Norte da Europa), peixes em vias de extinção ou perto da ruptura, cuja elevada procura só poderá ser suplantada pela aquacultura.

Diz-se que o peixe de aquacultura deixa um rasto de destruição nos ambientes marinhos. A produção de camarão nas Filipinas devastou 109 mil hectares de mangais pantanosos desde os anos 70, o equivalente a dois terços da área de mangal do país. No entanto, num relatório de 2009, a Greenpeace coloca Portugal no ranking dos países que mais consomem peixe de origem não sustentável. Isto quer dizer que a maioria dos supermercados portugueses não olha a meios para vender o peixe: muito vem de práticas ilegais de pesca. “A destruição do equivalente a dez campos de futebol no fundo dos oceanos só tem a duração de um suspiro”, escreveu a porta-voz da Greenpeace em Portugal, Lara Teunissen, no relatório.

Diz-se que o peixe de aquacultura tem um elevado nível de antibióticos e hormonas. Que os peixes são as novas galinhas do mar. Que as rações contêm demasiado peixe ou demasiada soja. Que, para não se dar peixe de comer ao peixe (apesar de, no mar, o peixe comer naturalmente outro peixe), se alteraram as dietas. Que o salmão, por exemplo, poderá ser, dentro de pouco tempo, vegetariano, o que poderá levar à sua alteração genética. Contudo, um estudo de 2007 encontrou vestígios elevados de mercúrio em mais de 600 rios dos Estados Unidos e Canadá. E um estudo da revista Science em 2008 prova que esses vestígios passam para a cadeia alimentar através de pássaros que se alimentam de seres na água contaminada.

Num artigo na Nature de 2009, Carlos M. Duarte, investigador em Maiorca, afirmava que, “apesar de parecerem peixes, estes assemelham-se cada vez mais a porcos”.

Vacas loucas, peste suína, gripe das aves, gripe suína, até, são escândalos alimentares que o consumidor não quer voltar a ver.

Da China a Mira

Da China (o maior produtor de aquacultura do mundo) a Mira (o maior viveiro de pregado do mundo), há uma tradição milenar de cultivo de peixe desde antes de Cristo. Sempre houve peixes em tanques. Na Europa, a aquacultura começou na Idade Média, quando peixes eram colocados em lagos que circundavam castelos, para mais tarde serem consumidos. Se não eram apanhados, reproduziam-se. A partir dos anos 80, a aquacultura europeia desenvolveu-se com fins comerciais, no Mediterrâneo (robalo e dourada) e na Noruega (salmão), ainda hoje as regiões com maior produção na Europa.

Mudou tudo. Maria Teresa Dinis explica que, nos anos 80, nos primórdios, a máxima da aquacultura era “from the farm to the fork” (do cultivo ao garfo): “Nessa altura, tínhamos de cultivar, melhorar a produção, viabilizá-la.” Hoje, essa ideia inverteu-se para “from the fork to the farm” (do garfo ao cultivo): “Estamos muito mais preocupados com a qualidade daquilo que comemos, temos de perceber como o peixe chegou ao consumidor, em que condições foi produzido, para que o consumidor tenha garantias.”

A história pessoal de Maria Teresa Dinis, catedrática da Universidade do Algarve, confunde-se com a da aquacultura em Portugal. As primeiras reproduções de peixes em cativeiro foram feitas sob sua supervisão no Aquário Vasco da Gama, nos anos 70. Depois de passar por Inglaterra (“o princípio dos princípios do pregado”), regressou ao Aquário e começou a trabalhar na reprodução de peixes. Apesar de se ter especializado em peixes planos, espécies geneticamente mais simples como o robalo e a dourada seriam mais rentáveis. O Aquário tinha um lote de reprodutores de robalo. Dinis conta como foi a primeira postura de robalos do país: “Muitos trabalhadores do Aquário eram funcionários públicos de dia, e, de noite, pescadores na Costa da Caparica. Um dia, um chama-me assustado porque o aquário dos robalos estava cheio de umas coisas que ele nunca tinha visto. Quando lá cheguei, estava cheio de ovos. Colhi os ovos com as redes e fizemos o primeiro desenvolvimento de larvas de robalo em Portugal. A partir daí tivemos várias reproduções.”

O legado de Maria Teresa Dinis é visível a vários níveis no sector, das pescas à investigação. Pelas suas mãos passaram muitos aquacultores do país, sobretudo a sul. “São todos meus filhos”, afirma. Jorge Dias é um deles, 41 anos, biólogo, investigador em nutrição de peixes, mas também empresário, dono de uma empresa de rações.

É Jorge Dias quem nos guia na visita ao Ramalhete, estação experimental da Universidade do Algarve. Estamos em plena ria Formosa, sob o violento ruído das turbinas dos aviões do aeroporto de Faro, um dos raros no mundo onde ainda há planespotters, mirones de binóculos a ver o levanta-aterra. Chegamos ao lusco-fusco do pôr do Sol. Lá dentro, escuridão quase total, os peixes dormem. A luz e a temperatura determinam as experiências em condições controladas. Há larvas de dourada com 25 a 30 dias. Parecem cavalos-marinhos quase invisíveis num pequeno tanque borbulhante. Também há linguados já crescidos, planos e tímidos, que não só fogem à agressão da lanterna, como também se tentam esconder da nossa presença, apesar de não haver recantos. Ficam stressados, explica Dias. Noutra sala há rotíferos, alimentos vivos microscópicos comidos pelos peixes e microalgas, necessárias para colmatar défices nutricionais. São cultivados aqui. Noutro tanque, lá fora, há 400 douradas adultas prestes a deixar o Ramalhete. “A aquacultura é para produzir comida e não só. Também permite o desenvolvimento de tecnologias que podem ser aplicadas a outras ciências”, explica Maria Teresa Dinis. No Ramalhete, faz-se investigação à escala: “Aqui fazemos aquacultura de balde. Depois é preciso fazer o scale lap (salto de escala)”, e aplicar o saber-fazer na indústria.

O mar já não dá

O relatório das Nações Unidas de 2008 é revelador da precariedade das pescas. Ainda não se sabe ao certo quando o oceano deixará de nos dar peixe, nem se essas previsões catastróficas são realistas, mas a Organização para a Agricultura e Alimentação (FAO) assinala o cada vez mais relevante papel da aquacultura. Se, em 1986, apenas 14 por cento do peixe consumido a nível mundial era de aquacultura, hoje ela equivale a metade de todo o peixe consumido. São estimativas e, por isso, devem ser lidas com reservas. Contudo, diz Maria Teresa Dinis, “isto é irreversível, porque o peixe é uma fonte alimentar importantíssima. Se calhar, é preciso haver um grande trabalho de sensibilização”.

Há ainda uma outra proporção a que a aquacultura não será alheia. Em 2030, a população mundial terá ultrapassado os oito mil milhões. Se, nessa altura, se mantiverem as percentagens de consumo de peixe de 17 quilos anuais per capita (Portugal consome 59 quilos anuais per capita), serão necessárias 29 milhões de toneladas de peixe extra às 110 milhões de toneladas já produzidas e capturadas hoje. Em 2030, contudo, os oceanos estarão completamente saturados, reservas em ruptura, espécies extintas. A escalada dos combustíveis, aliada à crise alimentar, é para continuar, prevê a FAO. Isto, a par das alterações climáticas, mudou totalmente o panorama das pescas.

Portugal é quase invisível no gráfico da produção de aquacultura, mas o sector mudou muito nos últimos anos. A instalação da maior unidade de produção de pregado do mundo pela multinacional espanhola Pescanova, na praia de Mira, foi abraçada pelo primeiro-ministro, “contra ventos e marés, e apesar de algumas contrariedades”, afirmou José Sócrates na inauguração. “É com estes investimentos que se cria um país melhor.”

Talvez por isso a aquacultura seja a aposta do Plano Operacional das Pescas do Governo para 2007/13, para onde serão disponibilizados cerca de 105 milhões de euros. Esta decisão vem de Bruxelas e do Fundo Europeu de Pescas: a aquacultura representa 65 mil postos de trabalho na UE. O secretário de Estado da Agricultura e das Pescas, Luís Medeiros Vieira, não podia ter sido mais realista: “Com as restrições à pesca no mar, onde já há muito pouco peixe, a aquacultura é a área estratégica de aposta para o futuro.”

Entre Agosto de 2001 e Maio 2007, o Instituto de Investigação das Pescas e do Mar (Ipimar) realizou ensaios para a instalação de jaulas de piscicultura em mar aberto, chamada de produção offshore, ao largo da ilha da Armona, em Olhão. O offshore possibilita a produção intensiva de peixe em grandes quantidades (a Grécia já produz dourada assim há vários anos) apesar de o investimento inicial ser extremamente elevado. Alguns lotes já foram concessionados.

Portugal é o terceiro maior consumidor de peixe do mundo, mas só produz oito mil toneladas de peixe de aquacultura. Quer chegar às 30 mil até 2013.

O sector é ainda precário, apesar da chegada da Pescanova, e está em crise. Houve várias falências nos últimos anos, a competição da Grécia é, muitas vezes, incomportável. O secretário da recém-criada Comissão Nacional de Aquacultores de Portugal, Fernando Gonçalves, diz que deverá haver “cerca de 65 piscicultores (produtores de peixe)”, muitos mais se lhes juntarmos os produtores de moluscos. “Muitas são microempresas com uma produção bastante baixa em regime extensivo.”

Ecologicamente sustentável

Para Jorge Dias, tudo passa pelo imaginário do consumidor. “A tal ideia de que o peixe selvagem é o top que o peixe de aquacultura tem de atingir já não faz sentido para mim.” Se o consumidor não confiar nos produtores, e acreditar que só pensam no lucro, vai resistir à aquacultura. O porco preto, por exemplo, promoveu-se à custa da “imagem de um porco a comer bolota num ambiente natural”. No caso da aquacultura semi-intensiva (a maior parte da produção portuguesa), “essa imagem já lá está, não é preciso trabalhá-la muito”. Por exemplo, no Algarve, “está num tanque de terra e numa zona de costa bem integrada”.

Na aquacultura extensiva, o animal só come o que a natureza lhe dá. Na semi-intensiva, há alimento natural e ração. Na intensiva, o peixe só come ração. As densidades dos animais por tanque também são consideradas. Os sistemas tradicionais de cultivo extensivo e semi-intensivo no Sul da Europa estão a enfrentar dificuldades devido ao aumento da produção costeira e à concorrência do peixe de aquacultura intensiva. Isto discutiu-se esta semana em Faro, no encontro do projecto Seacase (Aquacultura Costeira Sustentada, Extensiva e Semi-intensiva no Sul da Europa) que juntou especialistas de Portugal, França, Espanha, Grécia e Itália. O objectivo era encontrar respostas às questões da UE sobre se a aquacultura extensiva e semi-intensiva deve ser apoiada. Maria Teresa Dinis defende que, independentemente do lado económico, “a aquacultura extensiva tem um valor patrimonial, é ecologicamente sustentável e, portanto, deve ser mantida”.

Quinze minutos de barco até ao coração da ria Formosa. A piscicultura dos Sapais, em Faro, é um exemplo de como se pode cultivar, em regime semi-intensivo, uma espécie de grande procura como a dourada, atingindo não o preço imbatível da Grécia, mas uma relação qualidade-preço para um consumidor com poder de compra. A cultura faz-se em tanques de terra integrados na ria, obrigados a cumprir fortes leis ambientais. “Temos um nicho de mercado de qualidade”, explica José Augusto Nadkarni, biólogo, 45 anos, director da Pesca da Ria, empresa do grupo Mello, que há 20 anos produz dourada na ria Formosa.

São 16 hectares de tanques de grandes dimensões (400 metros por 55 de largura), cobertos por redes para impedir as gaivotas de roubar o peixe. Elas andam aí por cima, durante toda a conversa. O frio ferra e, ali, mais expostos, apesar do sol que brilha numa rara aparição deste Inverno, o vento não tem piedade e a lama enrola-se nos pés. São sete trabalhadores, mais a Zara e o Rex, dois enormes rafeiros alentejanos que não gostam de visitas. São grandes na proporção, como as douradas. Nos Sapais, produz-se a dourada de quilo (“a nossa imagem de marca é o peixe de 800 gramas”) e de meio quilo, o “peixe-dose”. As grandes vão quase todas para a Suíça (“um país nobre que escolhe os melhores produtos, e tem muito poder de compra”); as pequeninas são distribuídas no MARL, Setúbal e aqui no Algarve.

Nadkarni não gosta de falar pelo peixe, talvez porque acredita que este falará por si. Vai dizendo que “se correrem várias pisciculturas em Portugal, não encontram um peixe tão parecido ao selvagem como o nosso”. Revela que o segredo está na cor da mancha que dá o nome à dourada, acima dos olhos do peixe: “Há-de reparar no supermercado que, no peixe feito intensivamente, como a dourada da Grécia, esta mancha está branca. O peixe é produzido em grandes concentrações, alimentado com alto teor de gordura; a dourada do mar tem esta parte dourada, amarela.” Como esta que agora vemos num tanque com gelo, coberta por uma manta negra, pronta a ser embalada e consumida.

Nadkarni acredita que haverá sempre espaço para o peixe produzido intensivamente a baixo preço, como o da Grécia, e outro, com custos de produção mais elevados, para um consumidor de classe média-alta.

Nos Sapais estamos num sistema integrado na natureza, que utiliza água em função das marés e muito alimento natural. Por isso, Nadkarni acredita que estas pisciculturas devem ser defendidas, através de “uma certificação em relação a outras de exploração intensiva, que utilizam antibióticos e rações com alto teor de gorduras”. Por estarem em plena ria Formosa, têm enormes preocupações ambientais, “mas isso joga a nosso favor”, diz. “Quem produz nestas condições mais sustentáveis deve ser certificado.”

Maria Teresa Dinis concorda que o futuro da aquacultura portuguesa passará por uma certificação destas pisciculturas, semelhante à da agricultura biológica, “que mostre como estes peixes estão contentes e são produzidos de um modo sustentável”. Este é o primeiro “passo para informar as pessoas”. O consumidor pagará mais “porque os peixes não têm doenças”, e, apesar da resistência à aquacultura, o consumidor informado “prefere, sem dúvida, um peixe certificado, em lugar de outro produzido de forma intensiva em jaula”.

Nos Sapais, explica, “a gente faz o peixe nas calmas”.

O bom continua a sair bem

Na praia de Mira, é tudo grande, apesar de o administrador da Pescanova em Portugal, Carlos Henriques, dizer que a multinacional espanhola não é um gigante. A instalação da Acuinova, empresa filha, em Portugal, alterou totalmente o sector da aquacultura em pouco mais de um ano. E a concorrência foi vista com bons olhos pelos produtores divididos. “Em Portugal, o espírito associativo não é muito grande, as pessoas não se juntam e não se entendem. Era cada um por si”, explica António Vieira, aquacultor, presidente da Anaqua (uma das dezenas de associações de produtores), e dono da Aqualvor, no Algarve, a maior empresa de aquacultura do país antes da vinda dos galegos. Devido à larga experiência nas pescas, a Pescanova tem dado um “enorme empurrão” ao associativismo.

Os números falam por si: 140 milhões de euros de investimento, 200 empregos directos e 600 indirectos, 82 hectares (numa área total de 206 hectares), 1800 tanques de 120 metros quadrados. Neste momento, entram meio milhão de peixes por mês. “Já cá temos três milhões e meio”, explica Henriques, e “queremos chegar aos 12 milhões de peixes até 2012”, o que vai equivaler a sete mil toneladas por ano. Quatro mil quilos de ração por dia. “Isto, nem na Noruega”, diz. “Aliás, os noruegueses querem vir cá ver isto.”

Os hectares usados para a Acuinova se instalar equivalem a uma área da Rede Natura 2000 onde foram abatidos pinheiros e acácias, o que levou a um protesto da Quercus, guerra que a Pescanova tem ganho nos tribunais. Talvez fossem estas as “contrariedades” de que falava Sócrates.

A Quercus admite que as suas preocupações com a aquacultura têm sido ao nível de ordenamento do território e não do impacto ambiental. A presidente da associação, Susana Fonseca, diz não ser “contra” a aquacultura, mas levanta reservas sobre a produção intensiva de animais (como as suiniculturas ou os aviários), porque se corre o risco de, em altas densidades, haver elevados níveis de antibióticos e de poluição nos efluentes. “A área das pescas é um descalabro a nível mundial”, diz, e talvez a aquacultura seja a solução, em alguns casos: “É preciso perceber que deve ser feita de forma consciente, com respeito pelos equilíbrios ambientais.” Fonseca defende que, se em Portugal se faz essencialmente aquacultura extensiva ou semi-intensiva, deverá haver uma certificação que informe o consumidor da qualidade do produto.

Quem chega não pode ficar indiferente à densidade da mata que vai de Mira à Figueira da Foz e à enorme clareira ocupada pela empresa, a 500 metros da praia. Independentemente de quem ganhar no tribunal, o impacto visual da Pescanova é surpreendente, mesmo que no discurso de Henriques e nas brochuras sobre os “segredos do pregado”, distribuídas pelas escolas, as consequências ambientais sejam reduzidas: “A água que sai dos nossos tanques é mais limpa e rica! Podes continuar a estar na praia de Mira a tomar banho e ver as dunas intactas, ou seja, como elas sempre foram.”

Não há ruídos, nem fumos, nem poluição. Há o silêncio necessário ao bem-estar dos peixes. Roberto Romero, 32 anos, biólogo, director da Acuinova, está na Pescanova há uma década e sabe de peixe. Conta que o pregado é um peixe maleável, não sofre tanto como os outros, mas o controlo de stress e da qualidade de vida do animal são essenciais para o produto final. “É importante este controlo, porque se o peixe sofre de stress, deixa de comer. Aqui há um ambiente tranquilo, condições ideais para o peixe crescer.”

O pregado porta-se bem na fotografia, apesar de fugir das pessoas e da luz. Carlos Henriques explica que os pequenos comem 12 vezes por dia, alimentados por um robot que sabe exactamente quantos peixes há num tanque e a quantidade de ração a atribuir. Os adultos “são como os humanos, só comem três vezes”. Cada peixe tem um bilhete de identidade, tudo é controlado por computador: sabe-se quem são os pais, de onde veio, por onde passou e o que comeu.

Quando perguntamos porquê o pregado, Henriques conta-nos a história da Pescanova desde pequenina (em 2010 faz 50 anos): da pesca aos congelados, da África do Sul ao Chile, a aquacultura é a nova aposta da empresa — nesta década, 50 por cento do lucro será deste sector. Já estão em Espanha, Chile, Brasil e América Central, e trabalham quatro espécies: camarão, salmão, tilápia e pregado. “Fazemos pregado porque o sabemos fazer”, explica. “As outras espécies não passam de invenções: o linguado é muito recente, não se sabe fazer. Se estiver do lado de cá da indústria, o que não se sabe, não dá dinheiro.” E o mercado também o pede: “Os espanhóis dizem que o pregado é o faisão do mar. O mercado quer bichos de pele escura.” Exportam para o Norte de Espanha, França e Alemanha.

A Acuinova ainda não produz a 100 por cento: em 2005, escolheram os reprodutores, e só em 2009 tiveram posturas. “Isto é como a vinha”, leva anos até se tornar rentável, explica Carlos Henriques. A fábrica da Acuinova só estará operacional no Verão. Com três linhas de montagem (embalar, viscerar e fazer filetes), prevê-se que por ali passe um peixe por segundo.

Gordos, frescos e bons

Defensora intransigente do sector, Maria Teresa Dinis reproduz, noutros moldes, a conversa entre o empregado de mesa e o cliente que quer comer peixe. Do Porto ao Algarve, muitas ementas acrescentam entre parêntesis à frente da dourada: (do mar).

Empregado — Hoje temos peixe fresco: douradinhas do mar.

Maria Teresa Dinis — Só como de aquacultura.

“Eles são clones, brothers and sisters, são todos iguais. Garanto-lhe: a pessoa comum não sabe dizer a diferença. Talvez alguém mais sensível diga que é mais gordo, e, por isso, deverá ser de aquacultura. Mas esse peixe tem uma frescura incomparável ao do peixe capturado”, diz a investigadora.

Se há mitos sobre a aquacultura, há uma série de factos enunciados pelos produtores, investigadores e nutricionistas. Carlos Henriques garante que há maior consumo de peixe por causa da moda do sushi (e fala do sashimi de pregado, que já se come em Portugal), e porque comer peixe é mais saudável: “Há uma preocupação geral da população com o corpo e com a saúde, por isso se come mais peixe.” Os nutricionistas não negam que o peixe de aquacultura tem mais gordura, em geral, e níveis mais elevados de ómega 3 e 6. “Os detractores do peixe de aquacultura dizem que este tem gordura que não interessa”, explica Vítor Hugo Teixeira, professor de Nutrição na Faculdade de Ciências da Nutrição do Porto. Contudo, continua, “não há nenhuma evidência científica que explique se esse excesso de gordura é nocivo”. Numa população que ainda tem défices nutricionais como a nossa, o investigador só vê “vantagens em promover o consumo de peixe gordo”.

Mas há mais vantagens. José Augusto Nadkarni traça o cenário: “Quinta-feira, Agosto, calor, 30 graus, e quer comer dourada. É capturada a umas milhas da costa. Qual a capacidade que o pescador tem de conservar o peixe? É um perecível. O comerciante de peixe fresco tem um tempo muito curto para tornar a captura rentável.” O peixe da aquacultura dos Sapais, como o da Pescanova, é imediatamente consumido após o abate, conservado e embalado de imediato. A morte do peixe também é relevante: no mar, o peixe morre por asfixia, na aquacultura, por choque térmico, uma “morte santa”, diz Roberto Romero. Sem apertões, esmagamentos ou cortes. “Retira o peixe da água, a 20 graus, e mergulha-o logo numa solução de dois ou três graus. Há um bloqueio das glândulas endócrinas, o peixe contrai-se e cria músculo. O músculo é o que comemos, é a carne do peixe”, explica Nadkarni.

Agora, só falta o consumidor. Falta marketing dos aquacultores (em Espanha, a associação de produtores de pregado tem publicidade nos jornais, mostrando a frescura e qualidade do peixe), mas Jorge Dias diz que não é bem mostrar o peixe que importa: o objectivo não será mostrar que “sabe melhor”, mas apostar na ideia de que “é produzido de uma forma sustentada”. “Não é vender o filete, mas vender a imagem do peixe a ser produzido. Isso tem mais peso na cabeça do consumidor do que uma notícia”, diz.

O marketing ainda vem longe. Há um longo caminho a percorrer que passa por outras lutas dos produtores: redução da carga fiscal sobre os combustíveis, seguros, subsídios e isenções, formação profissional, acesso à electricidade verde, entre outros.

A pressão do consumo conduzirá à produção em massa de peixe em tanques, “e não necessariamente à produção de qualidade”, explica Carlos M. Duarte. “Não temos capacidade de imitar o que a natureza faz, fazer o diamante igual àquele que a natureza acabou de produzir”, diz Nadkarni. É um facto. Mas a Noruega continuará a produzir salmão em cativeiro e nós continuaremos a consumi-lo. A probabilidade de o seu peixe vir do mar será cada vez menor. Na Nature, lê-se: “O futuro será cultivado.”

Texto publicado na revista Pública de 24 de Janeiro de 2010
Sugerir correcção
Comentar