Ao fim de duas semanas de paralisação dos tribunais, Cavaco admite que “nem tudo correu pelo melhor”

Presidente do Supremo diz que justiça não tem como missão produzir a baixo custo para ter mercado e lucro. Problemas com a plataforma Citius e reforma dos tribunais estiveram muito presentes no encontro anual de juízes organizado pelo Conselho da Magistratura.

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Encontro de juízes decorre na Figueira da Foz Sérgio Azenha
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Encontro de juízes decorre na Figueira da Foz Sérgio Azenha
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Mouraz Lopes, presidente da Associação Sindical de Juízes Sérgio Azenha

Ao fim de duas semanas de paralisação quase total dos tribunais de primeira instância, por causa dos problemas de funcionamento da plataforma informática Citius, o Presidente da República, Cavaco Silva, admitiu que nem tudo está a correr bem na justiça portuguesa.

“Pelos vistos nem tudo correu pelo melhor, mas com certeza que o meu desejo seria que tivesse corrido pelo melhor”, disse Cavaco, numa altura em que o Ministério da Justiça continua a não se comprometer com um prazo para solucionar a questão. Eram esperadas novidades sobre o assunto no encontro de juízes que começou ontem na Figueira da Foz, mas a ministra da Justiça faltou à cerimónia de abertura, justificando a ausência com problemas de saúde, tendo enviado em seu lugar o secretário de Estado António Costa Moura. Este governante foi parco nas explicações dadas e remeteu para esta segunda-feira a apresentação de um “ponto da situação circunstanciado” sobre o problema. Limitou-se a prometer “para breve” a conclusão da migração electrónica dos processos judiciais e a assegurar que “não se perdeu um apenso, um documento” sequer na transferência entre o sistema antigo e o novo, apesar de vários processos terem chegado aos tribunais de destino com documentos a menos.

E se alguns magistrados disseram compreender a situação – “se mais não disse, é porque não sabe”, “trata-se de um problema técnico, e não política” -, quer da parte da Associação Sindical de Juízes Portugueses quer da Ordem dos Advogados a reacção às palavras do secretário de Estado foi dura. “É inconcebível que já tenham caído ministros por causa da queda de uma ponte e que, quando o sistema judicial está totalmente em colapso, a senhora ministra não apareça, refugiando-se no seu gabinete", comentou a bastonária dos advogados, Elina Fraga, que chegou a comparar a prolongada enumeração de estatísticas e de medidas do Ministério da Justiça feita pelo secretário de Estado no seu discurso com a actuação do ministro de Saddam Hussein que alegava que tudo estava bem quando Bagdad já estava sob bombardeamento: “Não sabe nada de justiça, não sabe nada do funcionamento dos tribunais, veio fazer uma propaganda miserável". Elina Fraga chamou ainda a atenção para "os milhões de processos ainda em caixotes e nos armazéns dos tribunais, sem que um juiz possa verificar se existe nalgum deles um prazo de caducidade iminente”.

"Precisamos de saber quando recomeça o sistema informático a funcionar, mas o Ministério da Justiça não se compromete", criticou também a secretária-geral da Associação Sindical de Juízes Portugueses, Maria José Costeiro, lamentando que o secretário de Estado António Costa Moura não tenha aproveitado a ocasião para dar esclarecimentos aos magistrados.

“Não podemos continuar neste limbo”, concordava o presidente da associação sindical, Mouraz Lopes, sugerindo, uma vez mais, que, à falta de uma solução tecnológica, a tutela enverede por uma solução legislativa destinada a congelar os prazos legais que estão a correr para os actos judiciais até o problema ser solucionado. “Será em cima de nós, magistrados e advogados, que irão cair os cidadãos quando se aperceberem dos atrasos”, fazia notar o dirigente sindical. “A situação é tão grave que estamos absolutamente perplexos com o que está a acontecer”.

Já o que tira o sono ao presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Henriques Gaspar, parece não ser o Citius, mas os caminhos do lucro e o “culto da celeridade” que alguns querem imprimir à justiça. Ora, a protecção de direitos “não é função da economia”, observou. “Será mesmo dispendiosa, e por isso anti-gestionária”. Na sessão solene de abertura do encontro anual dos juízes, organizado todos os anos pelo Conselho Superior da Magistratura, o presidente do Supremo deixou um aviso: a tentação de aplicar à justiça “perspectivas de management próprias dos sectores privados da economia, colocando a ênfase nos resultados e não nos procedimentos”, pode dar mau resultado, porque “a justiça não fabrica produtos para satisfação dos consumidores, nem tem como missão produzir a baixo custo para ter mercado e lucro". Henriques Gaspar afirmou que gostava de banir da esfera da justiça o termo "celeridade": “A justiça não tem que ser 'célere'. Tem que decidir em tempo razoável”, declarou. “Os critérios de tempo e de custo podem fragilizar as identidades judiciárias”.

Se o disse por estar distraído e não ter ouvido o presidente do Supremo ou se decidiu falar para vincar que o Governo tem uma posição diferente não se percebeu: o facto é que o secretário de Estado da Justiça, intervindo pouco depois de Henriques Gaspar, aludiu, precisamente, à necessidade de a justiça portuguesa ser “mais célere e eficaz”.

Em Santarém, falando aos jornalistas, o Presidente da República também disse que "é bom que se dê resposta a críticas que são feitas de que a Justiça não é célere", ou de que a Justiça não é igual para todos, ou que está longe dos cidadãos, ou que não contribui para o desenvolvimento económico e social. Questionado se admitia convocar o Conselho de Estado, por causa dos problemas registados na implementação da reforma do mapa judiciário, como pediu o Sindicato dos Oficiais de Justiça, o Presidente da República considerou a ideia “um absurdo”.

“Nem sempre é possível conseguir que tudo corra de forma perfeita", acrescentou o mais alto magistrado na nação. Os problemas na plataforma informática dos tribunais já levaram o Sindicato dos Oficiais de Justiça, e depois o Partido Socialista, a exigirem a demissão da ministra Paula Teixeira da Cruz.

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