Advogados vão passar a poder defender Estado nos processos contra a Administração

Ministério Público perde competências, o que para alguns é inconstitucional. Magistrados alertam para o risco dos custos com a defesa do Estado dispararem em benefício das grandes sociedades de advogados.

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Ao Ministério Público "compete representar o Estado", define a lei José Manuel Ribeiro/Reuters

O Estado vai passar a poder ser representado por advogados sem qualquer restrição nas acções de indemnizações contra o Estado, que actualmente são defendidas na esmagadora maioria dos casos pelo Ministério Público (MP).

Procuradores e juízes mostram-se preocupados com esta novidade, que faz parte do anteprojecto de revisão do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, que está neste momento em discussão pública. Motivo: numa conjuntura de austeridade, os magistrados temem que esta alteração faça disparar os custos com a defesa do Estado, em benefício das grandes sociedades de advogados. Há ainda quem entenda que a alteração viola a Constituição e o Estatuto do Ministério Público, uma posição partilhada pelo Sindicato dos Magistrados do Ministério Público (SMMP).

Para os advogados, este será um negócio bastante atractivo se tivermos em conta que, segundo os últimos dados da Procuradoria-Geral da República (PGR), relativos a 31 de Dezembro de 2012, o valor global das acções pendentes contra o Estado atingia quase 1,5 mil milhões de euros.

Este valor está, contudo, muito longe das indemnizações que o Estado tem sido obrigado a pagar na sequência das decisões dos 16 tribunais administrativos existentes no país. Segundo o último relatório de actividades da PGR, a taxa de sucesso do MP na defesa dos interesses patrimoniais do Estado é alta. Nos nove tribunais da área do Tribunal Central Administrativo (TCA) Sul – a segunda instância na jurisdição administrativa, que corresponde aos tribunais da relação na jurisdição comum –, em 2012, tiveram decisão definitiva 120 casos, tendo sido improcedentes 89% dos processos contra o Estado. Só em 13 acções o Estado foi condenado a pagar indemnizações, num total de 208 mil euros, que correspondem a uns inexpressivos 0,042% dos 491,8 milhões reivindicados. Na área do TCA Norte, a taxa de sucesso é um pouco mais baixa, tendo o Estado sido condenado a pagar 1,6 milhões de euros em 16 das 51 decisões definitivas.

Os motivos que servem de base aos processos intentados contra o Estado são diversos, mas os pedidos de indemnização têm sempre na base actos ou omissões da Administração Pública. Exemplos disso são o cancelamento de um concurso, uma expropriação irregular ou o erro de um magistrado num processo judicial.

A procuradora-geral adjunta Conceição Ligeiro, que integra o gabinete da procuradora-geral da República, considera esta mudança inconstitucional. E insiste que a Constituição determina que “ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar…”. Tal artigo, argumenta Conceição Ligeiro, "não permite o afastamento do Ministério Público da representação do Estado, nos termos em que parece pretender-se fazer no projecto legislativo em análise". O anteprojecto também alarga a possibilidade de o Estado ser representado em juízo por licenciados em Direito com funções de apoio jurídico nos serviços da Administração Pública, o que actualmente só excepcionalmente se permite aos ministérios, critica Conceição Ligeiro.

A juíza desembargadora Ana Celeste Carvalho, a exercer funções no Tribunal Central Administrativo Sul e docente no Centro de Estudos Judiciários, considera que apenas razões de natureza teórica, relacionadas com a concepção e o modelo de defesa e representação do Estado, poderão ditar esta proposta de alteração, e não razões de ordem prática. A magistrada insiste que na grande maioria dos casos o Ministério Público tem estado à altura da defesa e da representação dos interesses do Estado, além de não vislumbrar que do ponto de vista económico a solução agora proposta seja mais favorável. "O actual modelo tem dado resultado? Tem. O novo fica mais barato? Não. Então porquê mudar?".

As duas magistradas alertam ainda para o facto de as regras da contratação pública permitirem a utilização dos ajustes directos na contratação de advogados, o que possibilita ao Estado escolher sem recurso a concurso os defensores que pretender. Conceição Ligeiro insiste, por isso, que é importante saber como serão escolhidos os advogados ou sociedade de advogados que virão a exercer o patrocínio do Estado e quais os custos dessa representação. "É de realçar que a defesa do Estado pelo Ministério Público tem-se mostrado eficaz, atento o número elevado das acções intentadas e declaradas procedentes e os montantes significativos dos valores em causa, que as estatísticas vêm demonstrando", sublinha a procuradora-geral adjunta.

Em parecer, o SMMP diz que essa proposta lhe merece “franca e aberta discordância, em nome do interesse público”. E acrescenta: “A retirada, neste momento, desta competência ao Ministério Público permitiria um ainda maior descontrolo e esbanjamento dos interesses patrimoniais e materiais do Estado, o que, num momento de restrição de prestação de serviços públicos por falta de meios financeiros, não deixa de ter e ganhar óbvia relevância.”

Posição diferente tem a comissão de peritos que elaborou o anteprojecto do CPTA. O professor universitário Mário Aroso de Almeida, membro da comissão, explica que esta alteração tem por base argumentos teóricos. E lembra que antes do 25 de Abril o Ministério Público era um subordinado do Governo, fazendo, por isso, sentido nessa altura que estes magistrados representassem o Estado. "Com a Constituição de 1976, o Ministério Público passou a ter um estatuto de autonomia face ao poder executivo e, neste novo quadro, não fazia sentido herdar funções que vinham de trás", contextualiza Aroso de Almeida.

O universitário, especializado em Direito Administrativo e autor de uma vasta obra nesta área, defende que o Estado como parte/cliente deve poder exigir do seu defensor algo que não pode exigir do MP, que é autónomo e está obrigado a defender a legalidade. “O Estado nem sequer pode escolher o agente do MP que o vai representar. Tem que se sujeitar ao que está no tribunal competente”, realça. E acrescenta: “O que a comissão propõe é apenas que o Estado possa optar por constituir advogado. Só se optar por fazê-lo é que o Ministério Público deixa de representar o Estado”. Aroso de Almeida admite que se o Estado recorrer, muitas vezes, à contratação de advogado, os custos da sua defesa podem disparar, mas sustenta que essa avaliação tem que ser feita caso a caso, justificando-se essa opção em situações de maior complexidade que impliquem conhecimentos muito especializados. A comissão acredita que a sua proposta não viola a Constituição, mas apenas implicará uma alteração do Estatuto do MP. Sobre os problemas de ordem prática, o professor, também vice-reitor da Universidade Católica, diz que se podem sempre levantar problemas de eventuais compadrios entre governantes e advogados. “Um corpo próprio de advogados do Estado, com um estatuto próprio, resolveria essa questão”, acredita. Mas implicaria um encargo que, acredita Aroso de Almeida, na actual conjuntura o Estado não quererá assumir.

O professor universitário e advogado João Pacheco Amorim desvaloriza esta questão e insiste que no actual quadro já era possível recorrer a advogados, ainda que tal ocorresse poucas vezes. Elogiando, em geral, a competência dos procuradores, Pacheco Amorim destaca a precariedade da defesa do Estado quando esta é assegurada por juristas com funções de apoio jurídico e sem experiência de litigar nos tribunais. “Muitas vezes o barato sai caro”, resume. O advogado lembra ainda o papel “esquizofrénico do Ministério Público” que, por vezes, aparece nos tribunais administrativos a dar pareceres como defensor da legalidade e outras como representante do Estado.

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