O Estado falhou com o jovem suspeito de homicídio em Salvaterra de Magos?

Em defesa do jovem de 17 anos indiciado pelo homicídio de um rapaz de 14 anos, a advogada vai apontar responsabilidades. Mas será que, como diz, o Estado falhou? “O sistema falha em muitos casos. Mas o Estado não pode ser directamente responsabilizado."

O corpo de Filipe foi encontrado nuam arrecadação no último andar de um prédio em Salvaterra de Magos
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O corpo de Filipe foi encontrado nuam arrecadação no último andar de um prédio em Salvaterra de Magos Miguel Manso
Teresa Manique, a advogada, tem em mãos um caso absolutamente limite, de que seria tentador desistir
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Teresa Manique, a advogada, tem em mãos um caso absolutamente limite, de que seria tentador desistir Daniel Rocha

Teresa Manique tem muitos anos de experiência, mas a sua vida levou uma “enorme volta” desde que foi chamada para assistir um jovem num interrogatório policial por suspeita de homicídio, em Salvaterra de Magos. No seu escritório em Lisboa, a advogada fala com naturalidade, como se conhecesse desde sempre Daniel, o jovem indiciado pelo homicídio qualificado de um rapaz de 14 anos, no dia 11 de Maio. Estava na escala de prevenção de defensores oficiosos e recebeu a chamada pela Polícia Judiciária, três dias depois da detenção de Daniel.

“Durante o interrogatório, o Daniel e eu criámos uma grande empatia. Além de gostar dele, tenho pena dele.” Teresa Manique não esconde a forma como se envolveu. “O que aconteceu com o Daniel pode acontecer com os nossos filhos. Este caso diz respeito a toda a sociedade. E todos têm direito a ter uma defesa. Sempre que erramos, temos direito a recomeçar, e foi esse o conselho que eu lhe dei.”

De acordo com uma fonte ligada ao processo, novas diligências feitas esta semana em Salvaterra de Magos permitiram concluir que Daniel agiu sozinho, e não com cúmplices na morte ou ocultação do cadáver, como a polícia chegou a pensar. “Não há desculpa para o que ele fez”, reconhece Teresa Manique, que não fala sobre questões processuais enquanto este estiver em segredo de justiça.

A advogada não vai mudar o que está consumado: o espancamento e assassínio brutal de uma criança com uma barra de ferro e o abandono do cadáver numa arrecadação esquecida no último andar de um prédio de Salvaterra de Magos. Vai, sim, tentar mudar a perspectiva dominante de que Daniel é um caso perdido, que não merece nenhuma compaixão, e tentar responsabilizar os centros educativos por onde ele passou para cumprir medidas tutelares educativas por actos delinquentes cometidos quando tinha menos de 16 anos.

“O Estado tem o poder e o dever de o julgar criminalmente. Mas, constitucionalmente, o Daniel tem o direito e o Estado o dever de o reinserir, especialmente tratando-se de um jovem de 17 anos que ainda está a tempo de se reabilitar”, sustenta Teresa Manique. “O Estado falhou no seu papel de reabilitar Daniel.”

Teresa Manique sabe que Daniel precisa de ajuda psiquiátrica, e que muito facilmente se descompensa quando lhe é reduzida a medicação. Tem em mãos um caso absolutamente limite, de que seria tentador desistir – perante o repúdio gerado entre a opinião pública, e as palavras da mãe de Daniel, que horas depois de ele ter sido detido defendia no Facebook que o filho devia ser entregue para se “fazer justiça pelas próprias mãos”. Mais tarde, numa entrevista à TVI, a mãe mostrou-se arrependida pelas suas palavras.

Um caso tão extremo que o próprio sistema, incerto, hesita em assumir respostas. A advogada quer Daniel numa “instituição para jovens com apoio psiquiátrico”. E acredita numa atenuação da pena. “Depois de todas as provas serem juntas aos autos, a pena será muito atenuada em função dessas provas e da idade do arguido”, diz.

A idade da responsabilidade criminal em Portugal é de 16 anos. O crime pelo qual Daniel está indiciado tem uma moldura penal entre 12 e 25 anos. Porém, o Regime Penal Especial para Jovens Adultos, para jovens entre os 16 e os 21 anos, prevê, desde 1982, que a pena de prisão possa ser atenuada, quando o juiz “tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção do jovem condenado”. Esse mesmo regime especial também previa a construção de centros específicos para jovens entre os 16 e os 21 anos. Mas esses equipamentos nunca foram construídos.

O Estado falhou na reabilitação de Daniel? “Quem falha somos todos nós, enquanto sociedade”, contrapõe Maria do Carmo Peralta, procuradora-geral adjunta do Tribunal da Relação de Lisboa. A magistrada do Ministério Público, que desde 2009 coordena a Comissão de Acompanhamento e Fiscalização dos Centros Educativos (da Assembleia da República), não consegue “imputar ao Estado uma responsabilidade directa”. “Quem na primeira linha tem a responsabilidade da educação do jovem é a família. E um crime destes não se prevê.” Porém, reconhece: “O sistema falha em muitos casos. Não se pode exigir dos centros educativos que em poucos meses consigam mudar miúdos que vêm de meios sociais extremamente desfavorecidos. Miúdos que são completamente abandonados, que não tiveram as mesmas oportunidades que a dignidade obrigava a que tivessem tido.” E exemplifica: “Nas classes mais favorecidas, há contenção destas situações, porque as pessoas são tratadas, medicadas e acompanhadas.” Nas classes mais desfavorecidas, isso não acontece.

“Os jovens têm de ser responsabilizados, obviamente. Mas se não compreendermos o fenómeno, não o conseguiremos tratar. É preciso dar uma saída às pessoas, dar-lhes acesso à saúde”, defende Maria do Carmo Peralta. “O Daniel devia estar num hospital a ser tratado e acompanhado.”

Educação para o direito
A taxa de reincidência de jovens que cumpriram medidas de internamento rondava os 48% em 2008. Licínio Lima, subdirector-geral da Reinserção e Serviços Prisionais do Ministério da Justiça, garante, contudo, que esse valor está a baixar com “o trabalho de acompanhamento feito depois de os jovens saírem dos centros”, com contactos regulares para saber se o jovem está bem inserido.

Mas esclarece que, terminada a medida de internamento, o jovem deixa de estar sob a tutela da Justiça. “A nós, Justiça, compete-nos fazer cumprir uma ordem do tribunal e garantir o internamento. O objectivo do internamento é reeducar para o direito”, explica. “Terminada a medida, não podemos ter qualquer intervenção junto do jovem.”

Os centros educativos são estabelecimentos para jovens com menos de 16 anos que praticaram um acto que, acima dessa idade, seria crime. Muitos saem com mais de 16 anos, podendo as medidas de internamento – em regime fechado, semiaberto ou aberto – durar entre seis meses e dois anos (ou três anos em casos muito graves).

“É nesse período que o centro educativo tem que apostar tudo na formação e na reeducação do jovem. E fazer com que ele altere o seu modo de ver a vida, o seu modelo de vida, as suas crenças e as suas competências e enfrentar novos desafios.” E avisa: “A reincidência zero é uma quimera. Teremos sempre casos em que é impossível o jovem abandonar o crime totalmente.”

O inquérito do crime de Salvaterra de Magos continuava, pelo menos até quinta-feira, na Unidade Nacional contra o Terrorismo, da Polícia Judiciária. Foi nessa unidade que o caso começou a ser investigado por suspeita de rapto, depois do desaparecimento do rapaz assassinado. O corpo só viria a ser encontrado três dias depois, quando Daniel foi detido, antes de ser levado a um juiz de instrução em Santarém, ficando a partir daí sujeito à medida de coacção mais gravosa – prisão preventiva, na Prisão Escola de Leiria.

A advogada liga-lhe todos os dias e visita-o, pelo menos, uma vez por semana. Sobre ele tem dado muitas entrevistas, e isso muda a forma como Daniel é tratado por guardas e outros reclusos. “Ele é bem aceite. Deixou de ser visto como um monstro.”

Desde que começou a aparecer em defesa de Daniel, passou ela a atrair os ódios: em comentários nas páginas onde são publicadas as suas entrevistas ou nas redes sociais. Já recebeu ameaças de morte e teme sobretudo pelo bem-estar das duas filhas. Também ouviu palavras de encorajamento e elogios por não desistir de Daniel.

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