ADSE: contributos para um novo sistema nacional de saúde

Os últimos dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística dizem-nos que os portugueses estão já a pagar do seu bolso 28% das suas despesas de saúde.

“A humanização desapareceu, o mesmo acontecendo à personalização, pois a massificação está instalada – o doente, o utente, é cada vez mais encarado como um cifrão nos lucros que pode render aos hospitais.” Vítor Veloso, em “O SNS no fio da navalha”, Jornal de Notícias de 22/7/2015.

A Resolução do Conselho de Ministros, de 15 de Janeiro, pretendendo dar continuidade à reforma dos subsistemas de assistência na doença a servidores do Estado visa, basicamente, estudar “um modelo de governação transversal” que tenda para o seu auto financiamento. Ora, este parece-me ser um bom princípio para início de discussão sobre o que queremos que seja o nosso sistema de saúde num futuro próximo.

Criada no início da década de 60 do século XX, a Assistência na Doença aos Servidores Civis do Estado (ADSE), tinha, segundo os últimos dados disponíveis no seu site em www.adse.pt reportando ao ano de 2013, 1 290 816 beneficiários titulares e familiares. O escalão etário preponderante era o dos 0-19 anos (306 030), seguido do escalão 50-59 (230 491).

Durante os mais de 50 anos que leva ao serviço dos portugueses que trabalham para o Estado, a ADSE representou uma alternativa de livre escolha ao modelo clássico do Serviço Nacional de Saúde, o qual vincula o doente a uma instituição e a um médico, situação só (ligeiramente) alterada com o aparecimento das Unidades de Saúde Familiar (USF), onde é possível escolher o médico, desde que este tenha vagas na sua lista de inscritos.

Basicamente, dois sistemas de saúde são apresentados como alternativa:

- aquele em que os gastos na Saúde são, maioritariamente, suportados pelos impostos – modelo dos serviços  nacionais de saúde britânico e português.

- aquele em que os seguros, vendidos por empresas privadas, são responsáveis pelo pagamento das despesas, cabendo ao cidadão a escolha das coberturas que deseja, mediante o que pode ou quer pagar de prémio. Aqui, a Holanda é o país europeu usado como referência.

Acontece que, se formos analisar os recentes dados de uma reportagem sobre o serviço de saúde holandês no jornal PÚBLICO de 12/7/2015, percebemos que a Holanda tem uma maior despesa “per capita” em saúde do que Portugal (9,46% do PIB em Portugal, contra 12,44% na Holanda e uma média europeia de 9,61%). E tem, por exemplo, muito mais camas hospitalares do que Portugal, embora, paradoxalmente, só tenha uma taxa de ocupação de 48,6%, manifestamente abaixo da média europeia (75,8%). Para que necessita de tantas camas hospitalares um país em que, segundo a reportagem, todos têm médico de família?

Assim, se o nosso modelo não parece satisfazer, o modelo holandês também deixa muito a desejar.

Penso, porém, que Portugal pode ser pioneiro, caso consiga colocar em prática um sistema que seja um misto de ambos, traduzido num sistema nacional de saúde assente nos seguintes pressupostos:

- a manutenção de um serviço público, financiado por impostos, num modelo de concorrência auditada entre os seus profissionais e instituições, i.é, que permita ao doente escolher a unidade de saúde e o médico a que pretende recorrer..

- um seguro nacional de saúde, de subscrição voluntária e funcionando em moldes próximos da atual ADSE. Este ofereceria aos médicos duas possibilidades de colaboração: uma, através de um regime de convenções abertas a todos os médicos que o solicitassem; outra, permitindo que os doentes fossem ressarcidos de um montante pré-estabelecido através da apresentação de um recibo emitido por uma entidade não convencionada.

- os médicos poderiam escolher trabalhar em exclusividade ou em tempo parcial em qualquer dos regimes.

Isto permitiria criar um clima de sã concorrência entre os serviços públicos e os prestadores privados, com claro benefício para os doentes e para o Estado, sem nunca desobrigar o Estado de cumprir o seu dever constitucional para com o SNS.

A existir este regime, os cidadãos poderiam pagar os seus impostos e ter acesso ao normal sistema público de saúde – tal como existe agora, mas com a liberdade de o doente escolher a unidade e o médico com quem se quer relacionar – ou optar por pagar apenas uma taxa social solidária para garantir a saúde dos mais desprotegidos e pagar o prémio do seguro nacional de saúde. Em termos de acesso aos cuidados, estaria garantida a universalidade da cobertura e a liberdade de escolha.

Sei que os críticos dos sistemas apoiados em seguros de saúde dizem que estes representam mais despesa do que os sistemas financiados por impostos. Os dados, nomeadamente os já citados na reportagem do Público, provam que isso é verdade. A Holanda tem maior gasto “per capita” em saúde e a racionalidade nem sempre impera, como vimos no caso das camas hospitalares.

Porém, analisados os dados disponíveis nos sites da Pordata e ADSE, poderemos chegar aos seguintes valores:

Segundo a Pordata, a despesa do serviço nacional de saúde “per capita”  no Continente era de 849,4€ no ano de 2012. Nesse mesmo ano, e segundo dados do site da ADSE, a despesa por beneficiário era de 396,12€. Escolhemos para comparação o ano de 2012 por ter sido o primeiro ano em que a ADSE não recebeu comparticipação do Orçamento Geral do Estado.

Em 2013, último ano em que há dados estatísticos sobre saúde disponíveis no site das instituições atrás citadas, encontra-se como despesa “per capita” do serviço nacional de saúde 895,3€  e 382,28€ para a ADSE.

Embora não possam comparar directamente, estes dados mostram gastos/pessoa mais baixos na ADSE, vindo a diminuir de ano para ano.

Assim, e segundo diferentes fontes, a ADSE é sustentável, mesmo com contribuições de menor monta por parte dos beneficiário. Os sindicatos da Frente Comum dizem que uma contribuição de 1,5% seria suficiente para garantir a sustentabilidade da ADSE, enquanto uma recente auditoria feita às contas da ADSE pelo Tribunal de Contas conclui que uma contribuição de 2,25% por parte dos beneficiários seria suficiente para garantir, não só a sobrevivência da ADSE, mas até um excedente de 10%.

Em resumo, o novo modelo  deveria compreender:

- um serviço nacional de saúde, suportado por impostos, num modelo semelhante ao atual mas de adesão voluntária e com a liberdade de escolha do doente, quer no que respeita à instituição, quer ao médico com que se quer relacionar.

- uma rede de prestadores privados, convencionados ou não com o seguro nacional de saúde. Seguro que seria universal e de subscrição voluntária, i.é, de certa forma a extensão de um modelo próximo do que existe na ADSE, mas sem a atual obrigação de descontar para o financiamento do SNS senão na medida de uma contribuição solidária mínima, sendo que será necessário estudar os níveis de acesso e os custos a suportar por cada um dos sistemas quando os seus beneficiários pretenderem, pontualmente, aceder aos serviços proporcionados pelo outro.

Entretanto, os últimos dados disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística dizem-nos que os portugueses estão já a pagar do seu bolso 28% das suas despesas de saúde, uma percentagem que cresce continuamente. Sendo que os impostos e a contribuição para a ADSE também não têm parado de aumentar, não seria tempo de pensarmos numa solução diferente para desafios diferentes?

Estomatologista e  membro da Associação de Medicina de Proximidade – APCMG

 

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