Acusado de ser um dos líderes de organização criminosa reclama direito de ver os filhos

É um dos 46 arguidos de um mega processo. Os filhos estão em centros de acolhimento. Ele está detido e é acusado de os ter maltratado. Diz-se inocente. E vítima de “violência psicológica”.

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Público (arquivo)

Um croata de 51 anos está detido em Caxias por ser, alegadamente, um dos coordenadores de uma organização criminosa constituída por homens e mulheres de vários países, sobretudo do Leste europeu. De acordo com a acusação do Ministério Público (MP), as mulheres furtavam turistas em zonas movimentadas de Lisboa, Porto e Fátima, os homens tratavam da repartição dos proveitos e, alguns, falsificavam documentos e faziam entrar e sair do país outros indivíduos que também tinham como missão apropriarem-se de “bens móveis alheios”. Quando, em Outubro de 2012, a polícia desmantelou a rede, encontrou nas casas dos suspeitos 30 crianças e jovens. Tinham entre 1 mês e 14 anos. A maioria não tinha documentos. Oito destas crianças são filhos do cidadão croata de 51 anos. Que agora ameaça fazer greve de fome porque há mais de um ano que não lhe dão notícias dos filhos.

São 42 volumes, 10.000 páginas, 46 arguidos, 45 dos quais acusados, entre outros, de associação criminosa, e mais de 100 testemunhas. O julgamento terá início no dia 5 de Maio. Chegou a pensar-se em tráfico de menores (ver caixa). Testes de ADN feitos entretanto demonstraram que as 30 crianças eram filhas ou familiares dos arguidos. Muitas têm vivido nos últimos meses em centros de acolhimento. Outras, mantêm-se com familiares que aguardam em liberdade o julgamento.

O croata, representado pelo advogado Pedro Proença, está acusado de 53 crimes, dos quais 1 de associação criminosa, outro de auxílio à imigração ilegal, outro de falsificação de documentos e 14 de violência doméstica, relacionados com a forma e ele e as duas mulheres com quem vivia, também arguidas, alegadamente tratavam os filhos — “Não prestaram os cuidados necessários aos menores que tinham à sua guarda, privando-os de alimentação, vestuário, higiene, escolaridade, condições de habitabilidade e cuidados médicos adequados ao seu número, idade e doença”, lê-se na acusação.

O croata declara-se inocente e refuta todas as acusações. Incluindo a de que maltratava as crianças. Ou a de que as instruía a furtar. E diz que os seus direitos estão a ser violados, que está a ser alvo de “violência” psicológica. “O meu cliente está detido preventivamente há mais de 13 meses e está impedido de ter qualquer contacto com os seus filhos, presentemente à guarda do Tribunal de Família e Menores de Almada”, afirma Pedro Proença.

Uma das crianças foi submetida recentemente a uma intervenção cirúrgica. “O tribunal nem sequer informou o meu cliente sobre qual o objectivo da cirurgia e qual o seu resultado”, continua Proença. “E uma outra está em risco de perder a visão e foi hospitalizada. Também pouco ou nada se sabe. O meu cliente ainda não foi condenado por nada. E está desesperado por não saber dos filhos. Todos os pedidos de informação e de visita são recusados pelo tribunal”, diz. “Os arguidos que colaboraram com as autoridades na incriminação dos restantes, incluindo uma mulher também acusada de violência doméstica, aguardam o julgamento em liberdade na companhia dos respectivos filhos, o que causa enorme revolta entre os que estão detidos.”

Múltiplas identidades
No total, sete dos filhos do croata estão em centros de acolhimentos tutelados pela Segurança Social. Um oitavo, que terá agora 15 anos, e que também estava num centro, fugiu para Itália, depois de ter prestado declarações para memória futura (que poderão ser usadas em julgamento) onde incriminava o pai e relatava um clima de medo na família. O advogado diz que o rapaz comunicou entretanto que quer mudar o testemunho. E Proença vai pedir a nulidade do primeiro testemunho.

Não é fácil seguir o fio à meada da acusação do MP. Desde logo porque vários arguidos se identificam com nomes, idades e nacionalidades distintas — por exemplo, a mãe de quatro dos 8 filhos do cliente de Pedro Proença já se identificou como sendo 4 pessoas diferentes, uma com 41 anos, outra com 35, outra com 19 e outra com 17.

Além disso, vários dos filhos do arguido têm documentos que lhes atribuem outro pai, que não ele; uma das filhas tinha um documento que a identificava com um nome distinto daquele com que foi registada e o seu nome, por sua vez, aparecia no documento de identificação de outra menor.

Os acusados viviam em Portugal desde 2009, em casas arrendadas ou em hotéis. Vários já tinham sido condenados, sobretudo por furto em Portugal e noutros países. A maioria estavam em situação irregular. Segundo o MP usavam documentos forjados para fazer contratos de compra e venda e de arrendamento, contando com o apoio de uma empresária portuguesa, também arguida.

“Quiseram molestar”
Seis dos homens teriam um papel de liderança. O cidadão croata de 51 anos seria um deles — desde logo, obtendo “documentos de identificação, de viagem e outros para cidadãos” incluindo menores. Os seis, diz o MP, decidiam também onde colocar no terreno as mulheres e os menores para o exercício da actividade criminosa (que deveria render uma maquia mínima por dia, que estava pré-estabelecida). Há várias queixas, citadas no processo, de turistas vítimas de furtos junto ao Padrão dos Descobrimentos, do Mosteiro dos Jerónimos, do Oceanário ou no recinto do Santuário de Fátima, por exemplo.

Cinco dos arguidos, incluindo o croata e as mães dos seus filhos, são especificamente citados sobre a forma como tratavam as crianças: “utilizaram os menores que estavam à sua guarda e cuidado para obterem proventos económicos que gastaram em seu benefício”; “tinham rendimentos elevados” capazes “de proporcionar as necessárias e devidas condições de desenvolvimento harmonioso e adequado aos menores”, mas não o fizeram e as crianças dormiam em colchões, andavam sujas e uma delas não teve o “necessário tratamento médico e medicamentoso” que a doença neurológica de que sofre exigia, com um agravamento do seu estado de saúde; “quiseram molestar.”

O croata, como muitos dos arguidos, é de etnia cigana. E Pedro Proença acusa: “O que há neste processo é sobretudo um enorme preconceito rácico. Não há indícios de maus tratos físicos ou violência física. Os miúdos não iam de facto à escola porque ainda não tinham os papeis da legalização. Há provas que eles iam com os miúdos ao médico. O MP agarrou-se a factos que indiciam uma total incapacidade de contextualizar e enquadrar o caso nos hábitos de vida destas pessoas. É verdade que os miúdos dormiam em colchões no chão. Mas é assim que eles vivem. O MP aproveitou fotos tiradas após a rusga policial que procedeu à detenção do meu cliente em sua casa para argumentar que não havia preocupações de higiene. Esqueceu-se que a polícia revirou a casa de alto a baixo, deixou um cenário de destruição.”

O advogado nota que a investigação policial durava há quase dois anos quando se fizeram as detenções. “Se havia indícios de utilização dos menores e maus tratos por que é que demoraram quase dois anos a intervir?”

Questionado pelo PÚBLICO, o Instituto de Segurança Social (ISS), que tutela o sistema de protecção de crianças, fez saber que não é possível fornecer informações “uma vez que a privacidade e confidencialidade de uma situação familiar e pessoal constituem deveres profissionais para os técnicos da Segurança Social”. O ISS entende, de resto, que princípios como os do superior interesse da criança “resultam claramente ofendidos pela exposição pública, mesmo que assegurado o anonimato”.

Tráfico de seres humanos excluído por causa de legislação
Um dos crimes que foi investigado neste processo foi o de tráfico de seres humanos, nomeadamente de crianças para fins de mendicidade — aliás, as crianças apanhadas nesta rede fizeram com que o Relatório Anual de Segurança Interna de 2012 revelasse um disparo nos casos de sinalização de tráfico de menores (para 36). A hipótese de mendicidade seria afastada pouco depois. Mais tarde, o MP excluiu também a acusação de tráfico de seres humanos pela “dificuldade de recolha de provas e de elementos nesse sentido”, segundo uma fonte ligada ao processo, mas também porque só em 2013 — já depois de efectuadas as detenções — foi transposto para o Código Penal português uma directiva europeia que define com maior abrangência o crime de tráfico de pessoas, até então circunscrito a tráfico para fins de exploração laboral, sexual ou de extracção de órgãos, não incluindo a “exploração laboral ilícita”.

A nova noção de tráfico de seres humanos inclui “a exploração de actividades criminosas, em especial a prática de pequenos furtos ou roubos, tráfico de droga ou outras actividades similares, em que as componentes da ilicitude e do lucro estejam incluídas”. com J.G.H.

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