Abuso sexual de crianças: "Molduras penais deviam ser muitíssimo maiores”

Anabela Neves defende o polémico acesso dos pais às listas de predadores sexuais de menores, cuja criação deverá ser aprovada em breve em Conselho de Ministros.

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"Na criança, o trauma dos crimes sexuais é comparável ao trauma de guerra", diz Anabela Neves Daniel Rocha

É médica do Instituto de Medicina Legal especializada em abusos sexuais. O seu trabalho consiste em fazer exames médicos aos abusadores de crianças e às suas vítimas, que chegam a necessitar de cuidados cirúrgicos. Está também a fazer uma tese de doutoramento em neuropsicologia na Faculdade de Psicologia na Universidade de Salamanca sobre as alterações neuronais que surgem no cérebro das crianças abusadas. O predador é um sedutor, um manipulador, avisa. “Nós gostamos de pensar que são feios porcos e maus, mas não é verdade.”

Por que começou a interessar-se por abusos sexuais de menores?
Das primeiras coisas que vi, quando era estagiária no Hospital de Santa Maria, há 31 anos, foi uma criança de meses contra quem tinha sido perpetrada uma cópula, que acabou por falecer. Eu nem sonhava alguma vez ir para medicina legal.

Qual é a idade a partir da qual uma criança sobrevive a um abuso sexual com penetração?
A partir dos nove anos. Até aos seis, particularmente nas raparigas, a cópula pode provocar lacerações graves a nível perineal e hemorragias mortais.

E nos meninos?
Os esfíncteres anais são muito mais extensíveis. Mas estamos a falar de crianças que não desejam o acto – e cujos órgãos são mais pequenos. Contudo, o risco de morte é menor no rapaz do que na menina até aos seis anos. Agora os predadores são espertos. Sabem perfeitamente o que vão fazer e não querem pôr em risco a vida da criança, que os faria correr o risco de serem identificados. Portanto, estes casos são pouquíssimos.

Ao longo da sua carreira lembra-se de casos que a tenham marcado mais?
Muitos. Muitos. A comunicação social falou bastante do indivíduo que cloroformizava crianças para ter contactos sexuais com elas. Foi dramático. O clorofórmio é muito tóxico. Neste caso, à incapacidade de resistência somou-se o dano corporal grave.

Os crimes sexuais provocam traumas diferentes de outros crimes ?
Numa criança são comparáveis ao trauma de guerra. Mas as consequências dependem do tipo de abuso, da sua frequência e da relação da vítima com o predador.  E ainda do suporte que essa criança tem, quer na sua esfera familiar quer a nível psicoterapêutico. A minha tese de doutoramento é, aliás, sobre a forma como o abuso sexual afecta as funções executivas do lobo frontal [do cérebro]. Nem todas as pessoas abusadas vão desenvolver stress pós-traumático, consubstanciado no recordar dos factos, em pensamentos recorrentes, angústia…

Já falou com muitos predadores?
Sim. E muitas vezes descupabilizam-se: “Ah, bom! Também dei prazer à criança (ou à adolescente). E da maneira que andava vestida estava mesmo a querer que as coisas acontecessem!”. Também alegam que é uma maneira de iniciar sexualmente a criança. Infelizmente, tenho mesmo ouvido algumas mães dizer: “Isto não teria acontecido se ela não andasse assim vestida.” Está a esquecer-se de uma coisa que é o raciocínio e o juízo crítico – que nos diferencia dos outros animais. Naturalmente que temos impulsos. Mas não é por isso que passamos à acção.

Há diferenças entre predadores e pedófilos?
Dentro dos predadores, temos os pedófilos. O pedófilo é aquele que, por definição, tem actividades sexuais com crianças pré-púberes – ou seja, sem caracteres sexuais secundários, não têm sequer pêlos púbicos, e, no caso dos rapazes, que ainda não têm alterações da voz .

Qual é o perfil do predador?
Tem uma personalidade anti-social. É aquele tipo de pessoa que não tem resguardo dos direitos dos outros. Para obter poder, dinheiro, sexo, passa por cima de tudo. Normalmente é um sedutor, simpatiquíssimo. É doce, toda a gente gosta dele – dá-se bem com Deus e com o diabo. Alicia as pessoas, é um manipulador. É aquele amigo da família que é querido, que vai oferecer um Ipad ao nosso filho mesmo quando ele não precisa de outro tablet, numa interacção abusiva. Nós gostamos de pensar que são feios porcos e maus, mas não é verdade.

Que percentagem dos predadores são pedófilos?
Uma percentagem bastante substancial. Destes pedófilos, 70% têm outras parafilias, como o exibicionismo ou o voyeurismo. Há os que procuram ajuda psiquiátrica e por isso não chegam à acção. Mas são uma percentagem pequena.

É possível um pedófilo alegar em tribunal que é doente e não ir para a cadeia?
Tenho para mim que na pedofilia não há inimputabilidade. Mas quem estabelece isso é a psicologia forense, que determina se a pessoa, naquele preciso momento, estava capaz de avaliar o seu acto e mesmo assim passou à acção. Para mim, a pedofilia não é um termo da esfera criminal, mas da esfera psiquiátrica. O psicólogo forense tem de ouvir a vítima e o predador para determinar se este último é um pedófilo ou tem uma personalidade anti-social.

Que tratamentos existem para os predadores?
Há a castração química, mas tem efeitos secundários dramáticos. Até o predador tem direitos humanos. E há casos em que, mesmo depois de os testículos estarem completamente atrofiados pelas doses de estrogénios, os predadores tiveram impulsos. Há também a castração cirúrgica (a ablação dos testículos). Mas para mim, o principal tratamento é a psicoterapia para toda a vida.

Quantos predadores identificados há em Portugal?
Não sei. Espero que haja uma lei que crie um registo de predadores. Porque então, aí, teremos prevenção. Além disso, há uma directiva europeia e há a Convenção de Lanzarote [sobre abuso e exploração sexual de crianças].

Acha que essa lista deve existir e ser tornada pública, como pretende a nova proposta de lei?
Essa lista não será pública. A lei fala em “figuras parentais”. A lista só será acessível àqueles que têm capacidades parentais – que não são necessariamente os pais. Podem ser os avós – porque o pai já passou ao acto e as crianças foram-lhes entregues. Pode ser uma instituição. Acho importante que as figuras parentais saibam quem reside na sua zona ou na zona onde os seus filhos vão à escola. Mas, mais importante ainda, é saber quem foi contratado para tomar conta deles. Em relação à parte parental da lei, acho que tem de ser muito bem trabalhada, porque muitas vezes os abusadores são os pais. Mas nada a que os juristas não consigam dar a volta, se porventura a redacção da lei não for suficientemente clara. Para mim é-o. Temos de partir de alguma coisa.

A Anabela tem aqui algumas divergências com o próprio texto da lei.
Há algumas coisas que a lei vai trazer de inovador: por exemplo, quando um predador procurar emprego, o registo criminal estará lá. Actualmente, é tudo apagado cinco anos após o fim da pena! Com a nova lei, isso acaba. Quando se cometeu um acto sexual com crianças, isso já não será apagado do registo criminal [durante cinco a 20 anos, consoante a pena a que o predador foi condenado] .

A lei vinculará quem tiver acesso à lista a nunca revelar a identidade dos predadores. Acha possível?
Cada pessoa tem de guardar essa informação para si, acautelar os seus – e o vizinho do lado ou a amiga ou a prima que façam a mesma coisa.

Em França existe uma lista, mas a população não tem acesso a ela.
Mas no Reino Unido tem.

Se os pais tiverem as moradas dos predadores, não vão fazer justiça pelas próprias mãos?
Há seis anos, tivemos o caso, no Instituto de Medicina Legal, de uma criança de seis anos cujo abusador saiu da cadeia ao fim de três anos. Quando o viu cá fora, o pai perdeu a cabeça e deu-lhe uma tareia – e neste momento está recluso. Se há linchamentos para uma coisa, vamos pensar nos linchamentos para outras. Agora, eu ponho a questão aos portugueses: ver aquele indivíduo, que pode reincidir, em liberdade – se fosse o vosso filho, a vossa filha, o que é que faziam? Não aprovo o que esse pai fez. Mas estamos a falar do nosso filho,  da nossa filha, que foi vítima de abuso sexual. As pessoas que estão contra [o acesso à lista por parte das figuras parentais], que proponham alternativas.

Muitos predadores sexuais não são reincidentes. Portanto, mesmo que haja uma lista, será sempre muito incompleta.
Sempre.

Quão incompleta?
Vamos lá ver: há um estudo feito nos Estados Unidos com 9596 indivíduos condenados por abuso sexual de menores. Saem da prisão e 5,9% reincidem nos primeiros três anos.

Ou seja, a lista há-de conter 94% de pessoas que não vão reincidir.
Nos primeiros três anos!

A proposta de lei agrava as molduras penais?
Agrava. Há uma que é aumentada até oito anos. Mas na minha opinião pessoal, as molduras penais deviam ser muitíssimo maiores.

Que medidas preventivas podem ser tomadas para além da lista?
A prevenção deve ser feita pelos médicos de família. O sexo não tem de ser tabu. Por que é que não falamos abertamente da parte sexual?

E junto das crianças?
Também é importantíssima a prevenção dentro da própria família. Mas lá está, desde que o predador não seja o pai, ou o avô. Ora, a percentagem de pais biológicos predadores é bastante alta: 14%. E 72% dos casos de abuso acontecem no meio intrafamiliar: estamos a falar também de avós, de padrastos, primos, irmãos, tios, amigos da família.

As escolas não deveriam explicar às crianças quais são as situações de risco?
Perfeitamente. Mas para isso, os professores também têm de ter formação. E o professor também é um potencial predador…

Sabe se as aulas de educação sexual incluem uma componente sobre o abuso sexual?
Não faço ideia. Nunca fui chamada, nem os meus colegas, que eu saiba, para alguma vez falarmos numa escola.

E as crianças que lhe chegam, antes de serem abusadas sabiam o que isso era?
Algumas não! Posso dizer que há um caso que foi muito publicitado na comunicação social. Foi o de uma família felizmente funcional em que os pais avisaram o filho, de 13 anos, para ter atenção se alguém quisesse tocar-lhe. Quando o seu treinador se chegou a ele, falou com o pai. E à tarde, já havia uma denúncia.

O abuso não escolhe classe social.
Não escolhe. Nós é que gostamos de olhar para o pobrezinho como o mau da fita.

Em que consiste o seu trabalho com as crianças?
Naturalmente não é fácil começar. Devem ser usadas perguntas abertas. Não devemos dizer “Olha, foi o teu pai?”, embora já o saibamos, ou “Meteu-te a pila onde?”. Digo-lhe: “Olá, eu sou a Anabela, como é que tu estás?” Começamos logo a criar empatia. Não quer dizer que nos identifiquemos com elas, porque aí estragaríamos tudo, mas tentamos pôr-nos “no lugar de” sem nos “identificarmos com”. Demora-se o tempo que for preciso. A criança conta a sua história, sempre em discurso directo.

Certas crianças encobrem o predador?
Sim, porque são eles que trazem a comida para casa! E é logo dito: “Olha, se ele for preso, tu deixas de comer, tu vais para uma instituição…”

Faz também um exame médico?
Temos de fazer um exame ginecológico e ano-rectal às raparigas e um exame genital e ano-rectal aos rapazes. São exames invasivos em termos emocionais, psicológicos.

Também observa os agressores?
Às vezes até já sei que aquele indivíduo foi identificado através das amostras de ADN colhidas dentro da vagina da criança. Mas não entro logo na sala com a ideia de que ele já tem uma cruz na testa. Imaginemos que pergunto a uma menina: “Olha, minha querida, lembras-te de alguma coisa especial? O que é que tu viste? Ah, foi a pilinha. E viste lá alguma coisa?” Não posso perguntar directamente se é uma mancha. Mais tarde, insisto: “Olha, tu disseste que viste a pilinha, e o que é que viste ao pé?” E ela diz que havia umas manchas brancas. É evidente que só vendo o predador com os genitais desnudados conseguimos confirmar estas coisas.

E os suspeitos deixam?
Têm de deixar, porque é o juiz que ordena. Se disserem que não, têm de explicar ao juiz por que é que disseram que não.
 

   

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