A prisão preventiva de um e dos outros

Abraham Lincoln foi Presidente dos Estados Unidos da América nos anos 60 do século XIX. Um dirigente político que legou à Humanidade o amor pela liberdade, igualdade, democracia. Dizia que quem prefere a segurança à liberdade não merece nem uma nem outra. Foi assassinado por um fanático de ideias perversas.

A História cobriu de razão o Presidente americano. As grandes proclamações universais e constituições políticas dos Estados democráticos assentam na liberdade. Sem liberdade, não há civilização. Nem Estado democrático.

Não se trata de fraseologia gratuita. Antes de princípio fundamental à convivência social e política. À realização da natureza humana.

As épocas de crise são seara fértil aos abusos dos poderes. Os povos atemorizam-se. Receiam o presente e o futuro. Tendem a sobrevalorizar a segurança. Minimizar a liberdade.

O poder está sempre pronto e disponível a entrar por aí dentro. Armazena tudo. Escutas telefónicas, dados de tráfego e conteúdo de telefones e telemóveis, câmaras de vigilância. Satélites que espiolham tudo e todos. Vareja contas bancárias. Onde se gasta e não gasta. Com quem se esteve e não esteve. Adquirem-se provas com atropelos das regras processuais. A favor da comunidade! Para a defender dos criminosos! E para vigiar e intimidar os restantes. No futuro, podem virar perigosos delinquentes. Vive-se sob o tecto de um incomensurável e obsceno big brother. Edward Snowden o comprovou e denunciou.

Manipula-se a opinião pública pelas mais diversas formas. Prepara-se, sub-repticiamente, a condenação. As prisões preventivas para investigar mantêm o investigado manietado. Sem defesa. É investigado sem moral. Reside numa “outra ordem jurídica”.     

A lei processual penal é aparentemente respeitada. 

O processo penal só faz sentido se procura a verdade. Para além dela, é arbítrio. Não instrumento de realização da Justiça. Nele, não cabem todos os meios de investigação ainda que eficazes. Deve ter um ambiente respirável. Com respeito pelas regras e procedimentos. Do que se trata é sempre da liberdade individual. Condenando ou absolvendo.

Se o tribunal condena, é a “Justiça a funcionar”. Se absolve, é mais um “fracasso da Justiça”. O meio social está prenhe de acusações. Apto a aceitar a condenação. Relapso a aceitar a absolvição.         

A mediatização isenta e objectiva do processo mora ao lado da Justiça. Enriquece a cidadania. A desregrada estigmatiza e empobrece. Se não bole com a independência dos decisores, pressiona a de outros actores processuais não avezados ao espectáculo ritualista dos julgamentos. Gera emoções contraditórias de Justiça e justicialismo.

Na limitação à liberdade do cidadão antes da decisão definitiva, a Constituição da República Portuguesa é muito clara. A norma é a da excepcionalidade. O Estado deve mantê-la quando chamado a resolver o caso. Só em última instância, deverá ficar privado de liberdade.

A Constituição é a primeira lei. Os códigos sujeitam-se a esta. O inverso é virar a ordem jurídica de pernas para o ar. As regras dos códigos emanam da autorização constitucional.

O país tem cerca de 2500 cidadãos presos preventivamente. Os homens do Excel estão muito felizes. A percentagem é das mais baixas da Europa. Vivemos no país do Excel. As 40 mulheres assassinadas por violências, as mais variadas, no ano que corre são números. Os presos são números. Todos bem engaiolados nos quadradinhos das folhas de Excel. O cidadão inexiste. É um ponto variável no Instituto Nacional de Estatística.

A liberdade não diz respeito a números. O processo penal mostra o grau de civilização a que se chegou. Ou não chegou.

Procurador-geral adjunto    

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