A prescrição de Jardim Gonçalves

O banqueiro foi sancionado com uma coima de um milhão de euros e nove anos de inibição do exercício da actividade bancária. O procedimento prescreveu. Extinguiu-se pelo decurso do prazo legal. A sociedade sentiu-se.

Havia uma Justiça para ricos. Outra para pobres. Um dirigente partidário que, não há muito, propunha a criação de um tribunal especial para julgar grandes causas económico-financeiras, revoltou-se.

Não vale de nada falar nisso por esse ângulo. Em tudo é assim: uma coisa para ricos, outra para pobres. Saúde para uns, saúde para outros. Educação para uns, educação para outros.

O Governo, que santificou a austeridade para os outros, gasta dezenas e dezenas de milhões de euros por ano em assessoria jurídica de sociedades de advogados. Com aqueles êxitos conhecidos. Justiça de ricos.

Do processo, vale discutir quem, dos intervenientes processuais, com acção dolosa ou negligente, provocou a prescrição do procedimento. As causas desta.

O que se colhe da experiência chama-se falta de empenhamento dos mais diversos agentes da justiça. Desde as polícias aos tribunais, passando pelo Ministério Público.

Jardim Gonçalves limitou-se a exercer o direito de defesa. Aquela tarefa não tem dificuldade alguma. É analisar o processo. Ver onde esteve quieto. Diligências inúteis. Diligências a fazer de conta que o são. Ausência de empenhamento. Descuidos. Deixar correr. Estão a fazer disso uma tarefa hercúlea. Tão hercúlea que o banco e os juízes vão ser ouvidos na Assembleia da República.

Há questões que surgem logo. Por que esteve o processo anos e mais anos no banco? Para que serviram 680 mil euros inscritos para assessoria jurídica no caso BCP? Como andou mais anos e anos nos tribunais? Quem despendeu tanto tempo?

Depois, os prazos da prescrição. É crónico. Sempre que a sociedade se espanta com este ou aquele instituto jurídico, a comunidade jurídica e política despertam. Imputam desde logo responsabilidades à lei. Responsabilizar a lei equivale a desresponsabilizar os responsáveis. Que, no decurso do procedimento, a conhecem. Correm a alterá-la. Personalidades gradas envolvidas nos processos aceleram a voracidade legislativa do poder político.

É a “coerência do sistema jurídico”! O regime das contra-ordenações tem de harmonizar-se com o do direito penal. Vá a gente perceber que “coesão” se exige da área administrativa, como são as contra-ordenações, com a área penal.

Os fundamentos da prescrição são o esquecimento da transgressão, a desnecessidade de prevenir novas e a de evitar erros judiciários pelo afastamento dos factos praticados no tempo. Descobrem o mais fácil: alargar os prazos. À custa da paz jurídica dos arguidos. Num Estado de Direito, a sanção administrativa releva. Não acima de todos direitos individuais.

O poder político descobriu a “coerência do sistema”. Não lhe ocorreu antes. Legislam ao sabor da ressonância social deste ou outro processo. 

Não se dotam as entidades administrativas, onde decorrem a investigação e instrução das contra-ordenações, de meios e técnicos adequados. Nem os tribunais que decidem matérias sempre mais complexas. Publica-se um decreto-lei no Diário da República. A consciência política e social fica benzida.

Há uma Justiça para ricos. Outra para pobres. A dos ricos discute-se na Assembleia da República. Perturba e inspira alterações ao ordenamento jurídico.

 

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