A pausa no meio da tristeza

“Já praticou a eutanásia? Já matou pessoas?” “Eu eutanasio, não mato!”

“Já praticou a eutanásia? Já matou pessoas?”. Foi assim, sem mais, que a jornalista inglesa interrogou um médico belga que há pouco perdera a mãe de 82 anos através de um processo de eutanásia. A mãe já observara a evolução do Alzheimer em familiares próximos e não queria acabar do mesmo modo. Por isso, informou o filho médico e as filhas de que pretendia antecipar a sua morte, enquanto ainda lhe era reconhecida capacidade intelectual suficiente para o fazer.

Esta pergunta e esta pequena história está contida num programa que a Radio 4 da BBC emitiu em 9 de Janeiro deste ano sobre a eutanásia na Bélgica, em que se focava sobretudo a questão da possibilidade de estender essa realidade aos menores terminais em grande sofrimento físico que mostrassem discernimento suficiente para a entender e acabassem por dar indicações indesmentíveis de que era isso que pretendiam.

No programa, nota-se que o médico em questão fala com a jornalista com toda a boa fé e em tom triste. Ele e as irmãs tinham concordado com a vontade da mãe, tinham estado presentes aquando da eutanásia, mas isso não os fazia esquecer que, se ela pudesse ter deixado uma directiva antecipada eutanásica que só se cumprisse quando o Alzheimer fosse realmente profundo, poderia ter usufruído de um ano ou mais de vida razoável... e poderiam assim o filho e as filhas ter desfrutado da companhia da mãe durante mais tempo. Intuindo já a incompreensão da jornalista, o médico acrescenta algo a que podemos atribuir este sentido: “Aceitámos a vontade da mãe, mas isso não nos torna alegres, pois agora estamos de facto órfãos, sem pai nem mãe. Não é fácil”. É então que a jornalista, no seu tom frio, lhe “dispara”: “Já praticou a eutanásia? Já matou pessoas?”.

Perante esta equivalência simples – praticar a eutanásia e matar pessoas – o médico abandona por momentos o tom triste dos afectos doridos e faz vir ao de cima a sua reflexão mais racional sobre o tema, sem abandonar o tom cordato, mas como que espantado por lhe colocarem uma questão daquele género. Afastando-se do tom dorido, percebemos, mesmo tratando-se de rádio, que esboça um sorriso, ao mesmo tempo que afirma: “I’ve done euthanasia! I didn’t kill people! [“Pratiquei a eutanásia! Não matei pessoas!”]. E acrescenta algo para ele óbvio, que se poderia resumir assim: “É certo que a pessoa morre, mas trata-se de uma acção diferente, de uma outra atitude mental”.

Nos poucos debates portugueses em torno da morte assistida, ouve-se os opositores da sua despenalização dizerem frequentemente que, na eutanásia, o médico mata o doente a pedido deste último. Não há mais contextualizações, apenas o matraquear da palavra sonora: “mata”. Nada mais é dito sobre a situação da pessoa doente, como a doença de que padece e o seu prognóstico fatal, os tratamentos já recebidos, há quanto tempo sofre desesperadamente, etc. A sua singularidade é abafada, tudo se concentrando no médico que parece obedecer a uma pulsão assassina quase jubilosa: o doente pede e o médico anui, dando-se a entender que, caso contrário, o doente viveria muitos anos felizes. Nunca se dá a entender que, infelizmente, estamos apenas perante dois tipos de morte – um mais lento, outro mais rápido –, mas entre a vida e a morte, o que é nitidamente demagógico. O problema é que, com demagogia, nunca se alcançará um verdadeiro debate.

Docente aposentada da Universidade do Minho (laura.laura@mail.telepac.pt)

 
 

   

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