A nudez da Joana na Internet e nos tribunais portugueses

A guarda de imagens íntimas de terceiros é uma enorme responsabilidade

A Joana e o Miguel tiveram uma relação sentimental muito intensa e, em determinada altura dessa relação, o Miguel filmou a Joana, com o consentimento desta, numa cena íntima entre ambos. O filme, em suporte vídeo e com a duração de dez minutos, ficou guardado no computador do Miguel e destinava-se, naturalmente, a ser exclusivamente usado na intimidade do casal, e só por isso a Joana aceitara ser filmada. Tempos depois de finda a relação, o filme surgiu, acessível a toda a gente, na Internet, nele se reconhecendo, claramente e em grandes planos, a Joana.

Foi um enorme drama para a Joana: vivia num meio pequeno, amigos, conhecidos e familiares visualizaram as imagens e a Joana teve de passar a viver com insinuações trocistas e jocosas, sendo confrontada com o escárnio e o menosprezo daqueles que tinham visto o filme.

Joana recorreu aos tribunais. Alegando que fora o Miguel que colocara o filme no espaço virtual,  pedindo que fosse condenado a retirar o filme da Internet – onde lhe fosse possível – e a pagar-lhe uma indemnização de € 20.000 pelos danos morais. Não conseguiu provar que tinha sido o Miguel a colocar o filme na Internet, mas o tribunal de 1.ª instância, mesmo assim, responsabilizou o Miguel, condenando-o a pagar as despesas que a Joana tiveram com o processo e uma indemnização de € 10.000. Embora aceitasse não ter sido o Miguel quem disponibilizara o filme na Internet, considerou o tribunal que a sua conduta – omissão dos deveres de segurança, guarda e segurança dos dados pessoais sensíveis da Joana que tinha em seu poder – geravam uma obrigação de indemnizar, na medida em que, por acordo entre Joana e Miguel, este realizara o filme em causa e o guardara no seu computador, sendo que tal filme se destinava a ser exclusivamente usado na intimidade do casal e só por isso a Joana tinha consentido em ser filmada. O Miguel quebrara esse acordo ao deixar, voluntária ou involuntariamente, que as imagens em causa tivessem ido parar à Internet e, por isso, devia indemnizar a Joana.

O Miguel recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa, que o absolveu por considerar que, não tendo a Joana feito prova de que fora o Miguel a divulgar o filme, nem mesmo que a única cópia existente seria a que estava no seu computador, não havia quebra de qualquer acordo ou dever, nem direito a qualquer indemnização.

Recorreu a Joana para o Supremo Tribunal de Justiça, que considerou que a responsabilização ou não do Miguel dependia de se apurarem mais factos e mandou o processo voltar ao tribunal de 1.ª instância para aí se saber se, como alegara o Miguel para se desresponsabilizar, a Joana também tinha uma cópia do filme e se era prática o casal permitir que amigos passassem temporadas na sua casa e utilizassem livremente os seus computadores.

Mas nenhuma destas afirmações do Miguel ficou provada e o tribunal de 1.ª instância voltou, assim, a condenar o Miguel, que recorreu, de novo, para a Relação de Lisboa, que, por sua vez, voltou a absolver o Miguel; explicaram os juízes desembargadores que, embora a situação vivida pela Joana justificasse uma total solidariedade e o mais vivo dos repúdios, nem por isso se poderia entrar na chamada “jurisprudência do sentimento”, não podendo o tribunal proceder a uma “imputação arbitrária de culpas (ao Miguel) como forma de alijar o sofrimento (da Joana)”. A Joana consentira na gravação e na guarda do filme no computador do Miguel e não podia agora culpabilizar o Miguel pelo que sucedera.

Não desistiu a Joana e recorreu para o Supremo, onde os juízes-conselheiros Oliveira Vasconcelos, Fernando da Conceição Bento e João Trindade, no passado dia 3, decidiram condenar de novo o Miguel, uma vez que  não se tinham provado os factos que o Miguel alegara para afastar a sua responsabilidade e o Supremo já anteriormente tinha entendido que seria responsável pela divulgação do filme, caso não se provassem tais factos, nomeadamente a utilização do computador por terceiros.

Trata-se de um processo judicial que, para além de constituir uma notável vitória para a Joana e para a defesa da privacidade em geral, é um sério aviso não só para ex-namorados vingativos, mas também para qualquer pessoa que tenha filmes privados de terceiros no seu computador.

 

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