A morte do peru

No Natal o meu estado de espírito costumava ser como o do peru. Ia passar tormentos por causa de um ritual que não percebia e que, aliás, duvido que a maioria dos católicos perceba. Nem sempre foi assim. Quando era criança, e até adolescente, gostava do Natal. Por causa dos presentes, com certeza. Mas também – não é preciso muita subtileza sociológica – por causa da família. Nessa altura, ainda havia a família “extensa” do século XIX. Do lado da minha mãe (Pulido Valente), havia cinco irmãos (contando com ela) e 13 primos. Do lado do meu pai (Correia Guedes) sete irmãos (contando com ele) e 17 primos. Por tradição, o almoço de 25 era em casa dos Pulidos, porque o meu avô fazia anos (chegou aos 78); e o jantar dos Correia Guedes, menos formal, em casa da minha avó Elvira. O Natal servia para juntar esta gente toda, que durante o ano pouco se via.

Depois da morte do meu avô Pulido e da minha avó Elvira, este costume acabou pouco a pouco por se desfazer. Substituída por um ou outro telefonema ou uma outra visita, a grande ocasião de Natal, invariavelmente precedida por um enorme frenesim e obscuros mistérios, ficou reduzida a um encontro familiar, trivial e triste, em que a minha irmã (que vivia em S. Paulo) nunca estava. A maior parte dos meus tios morreu, uns tantos primos resolveram emigrar ou sair de Lisboa e, principalmente, as criadas desapareceram. Agora, quem se atreveria a aguentar sozinho 40 ou 50 pessoas, nem sempre sóbrias, que falavam alto, discutiam e se queriam exibir ou divertir? Excepto nas lojas, e mesmo nessas melancolicamente, o Natal já não existe.

Agora, as câmaras fornecem “iluminações”, sem espécie de sentido, e a televisão um “evento” qualquer. A excitação de maneira geral é pública. Onde param as 321 tias, que nos davam 378 presentes, com uma etiqueta, depois de angustiosas ruminações sobre o valor real e sentimental, que cada um merecia? Onde param essas cintilantes mesas com o peru, o champanhe e a lampreia de ovos? Onde param os conselhos sobre “o sexo” e “a mulher”, que os nossos tios insistiam em nos propinar, para aprimoramento da nossa educação? Em 2013, o dr. Costa em Lisboa e o dr. Moreira no Porto iluminam, mas não esclarecem. Neste Natal, jantei com a minha mulher e comecei a ler um livro num silêncio caloroso e apaziguante. Telefonaram amigos; telefonei a amigos. Foi um Natal muito feliz.
 
 

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