A matéria do 11.º? “Ui, onde é que isso já vai!...”

Pela primeira vez desde 2006, nos exames nacionais de Português, Matemática, História e Desenho vão ser avaliados os conhecimentos de dois anos e não apenas do 12.º ano. Uma questão que está a preocupar alunos, pais e professores e que as escolas abordaram de formas diversas.

Foto
“Ninguém sabe muito bem o que deve fazer, como deve estudar, o que é que convém privilegiar” Rui Gaudêncio

Esta semana, João Henrique, da escola secundária de Castro Daire, decidiu desenterrar enunciados de exames nacionais de 1998 e de 1999, quando tinha dois e três anos de idade. Queria praticar e foi o mais próximo que encontrou daquilo que calcula que vai enfrentar na quarta-feira, quando fizer o exame nacional de Português, e no dia 26, data da prova de Matemática. Desde 2007 que os exames do 12.º apenas incidem sobre a matéria do ano terminal do secundário, mas este ano abrangem também os conteúdos do 11.º, uma novidade que está a provocar apreensão e expectativa entre os alunos, pais e professores.

Não se pode dizer que alguém esteja a ser apanhado de surpresa. Teria sido o caso, se o Ministério da Educação e Ciência, (MEC) tivesse levado a sua avante, quando em Agosto de 2012 fez publicar uma portaria que determinava que que os exames de Português, Matemática, História e Desenho incidiriam já em 2013 sobre o programa dos três anos do secundário. O tom dos protestos, contudo, ditou o recuo e, em Outubro, o Governo anunciou a aplicação progressiva da medida.  

Graças àquela cedência, no ano passado os exames nacionais daquelas quatro disciplinas trienais contemplaram apenas a matéria leccionada no 12.º. Este ano já englobam também os conteúdos do 11.º e no próximo ano incidem sobre programa dos três anos. Professores e alunos sabiam bem disso, como sublinha Ana Moreira, professora de Português da Escola Secundária José Falcão de Coimbra que, ainda assim, não estranhou que este ano, quando iniciou as revisões, a reacção tenha sido um gemido cansado: “O Sermão de Santo António aos Peixes? Ui, stôra… Onde é que isso já vai!...”

“Não é fácil para eles. Estamos a lidar com alunos muito motivados, com expectativas elevadas em relação aos resultados e com um suporte familiar que em regra é forte. Mas são muitos conteúdos e, principalmente, não sabemos como será o exame, que tipo de conhecimentos vai exigir em relação às obras literárias, por exemplo”, comenta Ana Moreira.

É também a falta de referência que preocupa Ana Sofia Pinto, professora de História na Escola Secundária Azevedo Neves, da Damaia, conhecida como a escola mais africana de Portugal. “Vai ser testada a capacidade de análise, de ir às fontes? Ou será que pretendem que os alunos sejam capazes de debitar factos?”

A resposta às dúvidas dos docentes pode ser decisiva nos resultados dos alunos, porque o volume da matéria é, objectivamente, maior. Veja-se o caso de Português, a prova mais concorrida, em que se inscreveram 74.358 alunos. A quem não quiser perder os quatro valores (em vinte) destinados aos conteúdos do 11.º, terá de fazer mais do que dominar a poesia de Fernando Pessoa (ortónimo e heterónimos), a obra Mensagem, do mesmo poeta, Os Lusíadas, de Camões, a peça de teatro Felizmente há Luar, de Sttau Monteiro e o livro Memorial do Convento, de Saramago. Tem como desafio, este ano, garantir iguais conhecimentos do que estudaram no 11.º ano.

Obras como Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, Sermão de Santo António aos Peixes, de padre António Vieira, Os Maias, de Eça de Queirós e a poesia de Cesário Verde fazem parte da lista de conteúdos que este ano podem ser objecto de avaliação, pela primeira vez. “E História!? É uma loucura! Estamos a falar de três séculos!”, protesta Ana Rita Querale, aluna da Escola Secundária Inês de Castro de Canidelo, Gaia.

"Uma espécie de cobaias"
Em cada escola o desafio foi encarado de forma diferente. Português: na secundária José Falcão, em Coimbra, a matéria do 12º ano foi concentrada nos dois primeiros períodos de aulas, o terceiro foi dedicado aos conteúdos do 11.º ano e as aulas entre o primeiro dia de férias e o de exame a revisões do 12.º; na escola de Felgueiras, as aulas de apoio semanais foram dadas por dois professores, um dos quais estava a leccionar o 11.º, pelo que as revisões foram feitas ao longo do ano; na Secundária Rainha D. Leonor, em Lisboa, em cada um dos períodos foi dedicado um bloco de 90 minutos a revisões e a matéria foi incluída nos testes, para incentivar os alunos a estudarem em casa.

 A História, um exame que no qual se inscreveram 16.710 alunos, a diversidade de estratégias também é evidente. Por exemplo, Ana Sofia Pinto, professora na Damaia, dedicou à revisão da matéria do 11.º um bloco semanal de 90 minutos extra, no 2.º período, e dois blocos semanais com o mesmo tempo, no 3.º período. Célia Diogo, docente na Escola Secundária da Amora, considera que seria uma loucura o MEC exigir o conhecimento de factos, pelo que aproveitou os 45 minutos extra de apoio semanal à análise textos de textos.

“Ninguém sabe muito bem o que deve fazer, como deve estudar, o que é que convém privilegiar – somos uma espécie de cobaias”, lamenta Ana Raquel Nunes, aluna do curso de Ciências Sócio-Económicas na Secundária de Carcavelos. Optou por privilegiar no estudo o Português (prova específica no acesso ao superior), em detrimento da Matemática. Considera que no caso desta disciplina, “ao menos, a matéria está toda interligada, pelo que a diferença não é muito grande”.

A maior parte dos professores de Matemática contactados pelo PÚBLICO concorda – 80 % da matéria do 11.º tem continuidade no 12.º, dizem. Mas isso não significa que tenham ignorado a novidade ou que a desvalorizem. Valdemar Sousa, professor de Matemática na Secundária de Felgueiras, considera que “não augura nada de bom” que no teste intermédio, feito pelo Instituto de Avaliação Educativa, um grupo de perguntas tenha sido dedicada precisamente aos 20% de matéria do 11º. Manuela Carvalho, que dá aulas na secundária Infanta D. Maria, em Coimbra, também diz não entender a opção, que obriga a revisões numa disciplina que por ter um “programa extenso e complexo, no 12º”, já “quase não permite aos professores dedicarem tempo aos exercícios”, algo que considera “essencial”.

“Se o contexto já vem causar desigualdades entre os alunos, alargar os conteúdos sobre os quais os exames incidem sem aumentar o tempo destinado à disciplina não as vem atenuar, mas aumentar. Cada vez mais a escola se transforma num sítio onde se despeja a matéria – as explicações e a prática ficam para quem as pode pagar”, critica Manuela Carvalho.

As preocupações manifestadas pelos encarregados de educação vão na mesma linha. Jorge Ascenção, da Confederação Nacional de Associações de Pais, e António Parente, da Confederação Nacional Independente de Pais e Encarregados de Educação, não contestam que os exames incidam sobre a matéria dos três anos do secundário, mas mostram-se preocupados com o momento em que a alteração se verifica. “A agregação de escolas e o aumento dos alunos por turma, para só referir duas medidas negativas da política educativa recente, não favorecem o ensino e a aprendizagem, pelo contrário. E sendo assim, como é que se entende a necessidade de, neste quadro, somar mais matéria à que já era avaliada? Não me parece que fosse uma prioridade”, reflecte Ascenção.

Notícia corrigida às 21h05 A matéria que também sai no exame é do 11.º e não do 10.º ano.

Sugerir correcção
Comentar