A indisciplina das indústrias criativas

Dizer que são motor de renovação epistemológica talvez corresponda a atribuir-lhes demasiada importância, mas a verdade é que as indústrias criativas se instalaram definitivamente no meio universitário e exigem decisões sobre áreas de pesquisa a desenvolver, modelos de ensino a implementar e relações a estabelecer com o meio empresarial. A ocupação do espaço científico por novos campos de estudo e as tensões que o processo desencadeia têm, nas indústrias criativas, um excelente exemplo que justifica a nossa atenção.

A área das indústrias criativas trouxe alguma inquietação, nomeadamente, ao meio das artes e das humanidades, comportando-se como um elefante numa loja de louças ao confrontar este último com aspectos que se consideravam característicos de outro universo, ao lembrar que, afinal, lhe estavam associadas experiências de negócio pouco convencionais, práticas de gestão da criatividade, circuitos de distribuição e de consumo ditos inovadores.

Esqueço, por momentos, a politização deste domínio, o seu aproveitamento por discursos oportunistas, a sua presença em estratégias de ocasião, a sua instrumentalização, a sua utilização abusiva e o carácter vago e balofo de muitos projectos e centro-me nas considerações do âmbito académico e nos relatórios, mapeamentos, estudos de caso que o vêm tentando definir e perspectivar.

A área das indústrias criativas começa a funcionar como uma plataforma que permite a convergência de temas e de problemáticas que se estudavam em campos disciplinares separados, com a especificidade própria conquistada aolongo do itinerário percorrido na história da ciência e do conhecimento. Na investigação em indústrias criativas, dependendo de prioridades sugeridas por certas personalidades e instituições, encontramos tópicos oriundos da economia, das políticas públicas e governação, das finanças, da gestão cultural, da gestão das cidades, do urbanismo e regeneração urbana, da
competitividade e atractividade dos territórios, da geografia, da sociologia da cultura, da psicologia da criatividade, do turismo, do design, das tecnologias da comunicação e dos media…

Desviam-se temas de outras disciplinas e estudam-se classe criativa, economia criativa, cidade criativa, comércio criativo, turismo criativo, capital criativo, pensamento criativo, recursos criativos, organizações criativas, educação criativa…

Perante tal constelação temática, convém perguntar se visamos um campo específico, com terminologia e metodologia próprias ou se devemos encará-la na sua dimensão interdisciplinar, teia de cruzamentos e de relações? E, neste caso, respeitamos esse campo interdisciplinar ou devemos encará-lo na sua dimensão de indisciplina (importando a expressão de W.J.T. Mitchell de outra esfera académica)?

Este desafio é maior mas, talvez por isso, mais interessante (criativo?). Entre propaganda e experiência, discurso político e matéria de ensino, chavão útil na comunicação social e reconfiguração do quadro académico, eis como o território indisciplinado – para o bem e para o mal – das indústrias criativas desperta a nossa curiosidade e apela a uma observação atenta.

A autora é professora da Escola das Artes da Universidade Católica Portuguesa, no Porto

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