A importância de não esquecer

O reconhecimento dos direitos dos transgéneros e dos transexuais precisa de ser socialmente cimentado.

A notícia é brutal. Passa-se dentro de uma prisão do Estado da Georgia, nos EUA. Aliás, a vítima vai já no terceiro estabelecimento prisional, mas a violência sobre si não diminuiu com essas transferências. Em causa está a forma como o Estado da Georgia, através do seu sistema prisional, tem tratado e desrespeitado os direitos de uma mulher transexual de 33 anos, de nome Ashley Diamond, condenada a dez anos, pelo cúmulo de jurídico de vários crimes classificados pelo tribunal como “de sobrevivência”.

Desde criança que Ashley Diamond se identificava como rapariga e aos 17 anos iniciou o seu processo de mudança de género com tratamento hormonal, que tem de ser continuado. Mas, ao ser presa, Ashley Diamond viu suspensa a sua medicação, foi identificada como homem e colocada numa prisão masculina. A história relatada pelo PÚBLICO (07/04/2015) cita o jornal The New York Times, que relata três anos de sofrimento com constantes agressões, entre as quais sete violações em grupo e o castigo de ser várias vezes colocada em regime de solitária por “fingir que é uma mulher”.

Ashley Diamond conseguiu reagir e, com o apoio do Southern Poverty Law Center, denunciou e processou os serviços prisionais da Georgia. A sua defesa conta já com o apoio do Departamento de Justiça federal dos EUA (Ministério da Justiça), o qual classificou de “inconstitucional” o tratamento dado pelos serviços prisionais da Georgia a esta transexual, pois era sua obrigação proporcionar tratamento para a disforia de género.

É uma história impressionante e terrível. Tanto mais que se passa nos EUA, um país onde os direitos LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgéneros e Transexuais) estão bastante salvaguardados e onde, sobretudo sob a presidência de Barack Obama, tem sido feito um esforço de reconhecimento de direitos e de garantia de não-discriminação, nomeadamente nas Forças Armadas. Mesmo o facto de os EUA serem uma federação e os 51 Estados terem autonomia, por exemplo, para reconhecerem o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo – 37 dos quais já o fizeram – e de o Supremo Tribunal estar em vias de se pronunciar sobre a imposição desta medida a nível de toda a federação – não impede que se mantenha, mesmo em serviços públicos como as prisões, uma atitude transfóbica, que vive muitas vezes paredes-meias com a homofobia.

Um caso de tal desrespeito com tal violência de direitos de transgéneros ou de transexuais por serviços do Estado em Portugal não é conhecido. Mas ainda recentemente foi noticiado que o Instituto do Sangue está há dois anos para autorizar que os gays doem sangue (PÚBLICO 27/03/2015). Não a nível estatal, mas da sociedade, não é, por sua vez, possível esquecer o bárbaro assassinato da transgénero Gisberta Salce Júnior, morta no Porto há nove anos por um grupo de jovens.

Em Portugal, muitos dos direitos LGBT estão reconhecidos. Os casais de pessoas do mesmo sexo tiveram direito a unir-se de facto em 2001 e a casarem-se em 2010. Por sua vez, os transgéneros e os transexuais viram aprovar em 2010 a lei de identidade de género, que simplifica para uns e para outros a alteração do nome e da identidade. E já este ano foi aprovada por unanimidade na Assembleia da República a lei sobre a não-discriminação de transgéneros e transexuais no local de trabalho.

Mas há uma imensidão de trabalho a ser feito pelo Estado e pelos partidos parlamentares e que formam governos para tornar a sociedade portuguesa mais inclusiva, mais democrática porque mais diversa, com maior capacidade de reconhecer a pluralidade de identidades. Um trabalho lento e silencioso de esclarecimento e formação, a começar pelas escolas, mas não apenas aí. Também nas empresas privadas e nos serviços públicos, desde autarquias a, claro, serviços prisionais.

O reconhecimento dos direitos dos transgéneros e dos transexuais precisa de ser socialmente cimentado e deve ser sublinhada a necessidade de uma sensibilização social para estas questões. Não basta aprovar leis. Não é sustentável um laxismo por parte dos responsáveis públicos que não atentam que a legislação seja cumprida e os direitos garantidos.

Por exemplo, não é compreensível que não tenha ainda sido ultrapassada a paralisia que vigora desde 2011 no Hospital de Santa Maria. O hospital que, em Lisboa, assegura as mudanças de sexo, ao lado de um no Porto e de outro em Coimbra. Ou seja, desde que o cirurgião plástico João Décio Ferreira se reformou, o Hospital de Santa Maria está sem operadores que façam mudanças de sexo. Parafraseando o Departamento de Justiça norte-americano, era importante que os responsáveis públicos em Portugal, em particular os responsáveis por ultrapassar esta questão, se lembrassem que os transexuais têm direitos na Constituição.

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