A ideia é não esperar por um cancro para descobrir “o que na verdade importa”

Uma fundação espanhola dedica-se há oito anos a encher auditórios com jovens universitários que ouvem histórias de vida que davam filmes de Hollywood. Algumas já deram. A espanhola e morena María Belón já foi uma loura inglesa.

Foto
Daniel Rocha

Já toda a gente ouviu falar daquelas vidas que mudaram quando chegaram ao fundo do poço. A pessoa que vai dar a volta ao mundo depois de ter sobrevivido a um cancro, o homem mau que não ligava nenhuma à mulher e aos filhos e que, com um diagnóstico de doença terminal, se torna pai e marido ideais, o desempregado que entra em depressão mas depois acaba por criar a sua própria empresa de sucesso. Costumam dar filmes de Hollywood, livros inspiradores, às vezes as duas coisas. São narrativas de superação, em que o herói começa na mó de baixo, tem tudo contra si, atravessa obstáculos diversos e dá, surpreendentemente, ou não, a volta por cima. E ainda acaba a inspirar os que o rodeiam.

A ideia da Fundação espanhola ‘O que de verdade importa’ é pegar em protagonistas deste tipo de vidas e pô-los num palco a falar a um microfone. Enchem a plateia de jovens universitários – em idades em que supostamente são permeáveis à mudança – a ouvir estas histórias. Esperam que dali saiam a saber “o que na verdade importa”, expressão que foram buscar ao título de um livro que o milionário americano Nicholas Fortsmann escreveu aos filhos antes de morrer de cancro. A fundação organiza desde 2007 dezenas destes congressos em Espanha e na América Latina. No primeiro evento deste tipo em Portugal esperam encher a praça do Campo Pequeno, em Lisboa.

Ouçamos então João Tavares Semedo, uma das quatro vidas que vai subir ao palco português a 14 de Março. Já foi o 255, já foi o 402, já foi o 55. Habituou-se a ser chamado assim: 255 vai à visita, 402 vai à direcção, 55 vais ter uma pena de castigo. Até que, na penúltima das seis cadeias onde esteve preso, houve uma técnica que o tratou por João Semedo Tavares. Olhou para ele e para o relatório que tinha à frente – descrição de todas as brigas em que tinha estado envolvido, do seu consumo reiterado de heroína e cocaína na cadeia – com tudo o que catalogava como “perigoso” e mandou embora os dois guardas prisionais que ali estavam para a defenderem de João. “Ela não teve medo de mim”.

Foi a primeira pessoa que o ouviu quando disse que não queria ser expulso de Portugal mal acabasse a pena porque não conhecia ninguém nem no país onde tinha nascido, São Tomé e Príncipe, nem no país dos seus pais, Cabo Verde.  “A Dra Leonor”, não tem a certeza de ser esse o seu nome, “andava muito fora”, foi o início da mudança. Foi ela que lhe disse para escrever ao Presidente da República a pedir um indulto. Mário Soares deixou-o ficar em Portugal.

A vida de Johnson, como prefere que o tratem, dava e deu um filme. Senão vejamos: Foi trazido para Portugal com dois anos, veio viver para uma barraca no bairro da Cova da Moura com mais seis irmãos. Com dez anos fugiu de casa e tornou-se menino de rua, viu com os seus olhos os que, com a sua idade, se prostituíam no Parque Eduardo VII (em Lisboa), preferiu roubar. Começou por snifar cola, mais tarde chegou à heroína. Com 18 anos foi preso por furto de uma loja. De que loja? Terá sido uma ourivesaria? Não se lembra bem, foram tantas. A pena seria à partida de seis, cinco anos, acabou por a ver alargada a dez anos, por mau comportamento. Começou na prisão da Polícia Judiciária, esteve na de Setúbal, Leiria, Linhó, Vale de Judeus, Coimbra, voltou a Vale de Judeus. Foi sucessivamente transferido porque ninguém o queria dentro dos seus muros.

Saiu com 28 anos. Esteve dois anos numa comunidade terapêutica, onde só entrou porque uma técnica de reinserção social, o nome dela é Maria Castelo – “gostava de a voltar a ver, disseram-me que se aposentou” – lhe ter ido bater à porta de casa. “A montanha foi a Maomé”, lembra. “Há muitas pessoas que encontramos na vida e não nos dizem nada, essa senhora nunca mais me saiu da memória”.

Não consome droga há dez anos. Casou-se, tem dois filhos. Ao mais velho, o João Pedro, de cinco anos, encontrou-o hoje de manhã a olhar-se ao espelho, “ó pai, tenho uma camisa chique”; concordou com ele, “é mesmo muito bonita essa camisa”. É o mesmo filho que já lhe perguntou pelo seu passado na prisão, quando viu na televisão o Senhor Lei, o polícia do Noddy que passa os dias a apanhar os duendes Sonso e Mafarrico por fazerem distúrbios na Cidade dos Brinquedos. Johnson ensina futsal a miúdos de bairros problemáticos e está a tentar entrar para a universidade. Teve 17 no exame.

Os tsunamis da vida
Se a vida de Johnson dava um filme de Hollywood, a de María Belón já deu. Ela é morena, espanhola, mas talvez a conheçam como loura e inglesa, é a verdadeira protagonista do filme O Impossível, o seu papel é desempenhado pela actriz Naomi Watts. Vai ser outra das oradoras do evento de Lisboa.

No caso de María tudo começou bem. Ela era uma bem sucedida médica, estava com o marido e os três filhos a passar as férias de Natal num resort de luxo, na Tailândia. Eram felizes. Ela estava a ler o livro A Sombra do Vento, de Carlos Ruiz Zafón, os filhos, Lucas de dez anos, Tomás de oito e Simon de cinco, estavam na piscina a brincar quando, de repente, ouviu um som, “como se milhares de aviões tivessem ligado as turbinas ao mesmo tempo”, e há um muro que lhe pareceu negro mas que era feito de água, contou numa entrevista que deu à revista americana People. Ela acordou com ferimentos graves, a família desapareceu. Reencontrou depois um filho e, o resto do filme, ou melhor, daqueles dias da sua vida, foram a busca pelo reencontro. Quem terá restado?

Os cinco membros da família Belón sobreviveram, foi uma das que escapou inteira ao tsunami no Sudeste asiático, em 2004. María contou que conheceu uma família de sete em que sobreviveram dois. O filme, conta, é fiel à sua história.

Só que o filme tem a duração de 114 minutos, o processo de recuperação familiar foi muito longo. Passou quatro meses num hospital, foi operada 16 vezes. Durante seis meses, a família dormiu com as luzes acesas. Durante um ano não conseguiram voltar a ver o mar. O filho mais novo teve durante muito tempo pesadelos com monstros sem olhos, porque, na realidade, quando o pai o encontrou estava ao lado de um cadáver sem um olho. Tiveram que lhe inventar um sapo que todos os dias lhe comia os pesadelos. María contou, num dos eventos da fundação em Espanha, que Naomi Watts teve que ser muito caracterizada, porque se vissem como ela ficou mesmo ninguém ia ver o filme. María perdeu uma perna. Porque fala em público a jovens? “Há uma coisa que não se aprende na escola: a vida é muito dura e temos de passar de forma digna por ela, pelos seus tsunamis”, disse esta semana por videoconferência, num encontro organizado pela fundação espanhola, em Lisboa, em antecipação ao que dirá na mesma cidade no próximo dia 14. O evento será de entrada livre, a seguir a cada testemunho haverá sessões de perguntas, começa às 8h30 e termina às 17h00.

Valores humanos universais
María Franco, a espanhola que criou a fundação há cerca de oito anos, diz que se deu conta “de que é triste que uma pessoa tenha que passar por uma experiência traumática para se dar conta do que na verdade importa na vida”.

Por isso, decidiu aproveitar as experiências de pessoas que viveram uma situação-limite ou que decidiram fazer uma mudança radical na sua vida para ajudar os outros e apresentá-las a jovens, para que aprendam ‘o que na verdade importa’”, lê-se no site da fundação. A saber: “valores humanos universais, como a tolerância, a superação, o respeito o a solidariedade, o esforço, o optimismo”.

Além de Johnson e de María, subirão ao palco do Campo Pequeno também Bento Amaral, um português que aos 25 anos ficou tetraplégico. Hoje é enólogo, professor universitário e foi campeão do mundo de vela adaptada. Escreveu o livro Sobreviver. E Jaume Sanllorente, um jornalista catalão que numa viagem à Índia se comoveu com as vidas de crianças que se prostituíam nas ruas. Vendeu a sua casa em Espanha, comprou um orfanato em Bombaim, criou a Organização Não Governamental Sorrisos de Bombaim.

Desde 2007 já subiram a palcos espanhóis e da América Latina William Rodríguez, sobrevivente do 11 de Setembro; Bosco Gutiérrez, arquitecto mexicano sequestrado durante nove meses; Irene Villa, jornalista que sofreu um atentado da ETA; Nando Parrado, um dos 16 sobreviventes do acidente aéreo dos Andes que inspirou o filme Vivos; Pablo Pineda, primeiro europeu com síndrome de Down com título universitário e protagonista do filme Eu, também.

Nas redes sociais há 600 pessoas que dizem que vão comparecer em Lisboa. Em Espanha a lotação chega a atingir os três mil, diz Laurinda Alves, escolhida como presidente honorária da fundação em Portugal, esclarecendo que o evento não tem nada de religioso ou de auto-ajuda. A ideia é que ouvindo o que aconteceu a estas pessoas em circunstâncias radicais, alguns jovens possam fazer pontes com as suas situações de crise, que podem ser menos dramáticas, o fim de um namoro, uma má nota, uma morte de um familiar. Cada um terá os seus pontos de viragem. E não é preciso ter vidas que davam um filme.

Notícia acrescentada às 12h07

Sugerir correcção
Comentar