A hipocrisia e o segredo de justiça

O mandato da Procuradora-Geral da República (PGR) tem sido algo deficitário.

Já a auditoria que ordenou aos processos com ressonância no segredo de justiça é de louvar. A temática não é criminalmente relevante, mas a sistemática mediatização do assunto emprestou-lhe muito mais importância do que tem.

Não há nenhuma regra a estabelecer ou impor o segredo de justiça.

Se o processo penal se mediatiza, mediatiza-se o dedo acusador: violadores do segredo são os magistrados, funcionários, polícias, jornalistas. Nunca outros. São condenados sem contraditório.

Ninguém se questiona se o processo está em segredo. Dizem que está. Na maioria dos casos não está. É público.

Sempre que se dá início a um processo penal, está aberto. Quem tenha legitimidade pode consultá-lo: arguidos, ofendidos, comunicação social. Está no Código de Processo Penal (CPP)

Não há matéria onde mais venha ao de cima a hipocrisia dos políticos e arredores. Falam como se todo o processo nascesse sob o manto do segredo. De tudo debitam com leviandade. Dissimulam ignorar as leis que encomendaram e aprovaram. Adoram segredos. Detestam a transparência.

O segredo de justiça é buraco onde ocultam e cobrem a incompetência, displicência e desinteresse com que tratam o sistema judicial. Também a responsabilidade criminal que, muitas vezes, lhes cabe.

O segredo pode (não é obrigatório) ser decretado pelo Ministério Público (MP) com ratificação do juiz de instrução. Só a partir daí entra o sigilo no processo. Pode voltar a ser público.

Tem objectivos  específicos. Resguarda a honra dos cidadãos. Vida privada e íntima. Amores, cartas pessoais, contas bancárias, vida familiar, amizades. Esse núcleo da existência que é só nosso. Protege e preserva a investigação. Actos relevantes do processo, declarações, buscas, contas bancárias, escutas telefónicas, locais, relações de negócios, vida profissional, tudo o que a lei permite adquirir com o objectivo exclusivo de saber se houve crime e quem é o seu autor.

Paradoxalmente, tem efeitos perversos. Oculta e protege a falta de empenhamento dos agentes judiciários. O desprezo dos políticos pela investigação. Obstacula a sindicância sobre o que, “intra muros”, se desenvolve no processo. Coloca- o  fora da lei. De controlo comunitário.

A sua violação não constitui um magno problema da Justiça. Se o fosse, o processo em segredo nunca poderia depender da análise conjuntural elaborada pelo MP. A lei o impunha. Nem a pena seria tão baixa. É um problema menor.

A esquizofrenia em torno do segredo compreende-se nos políticos e poderosos. A Justiça bateu-lhes à porta. Desviam-se as atenções da temática do processo. São as vítimas. Infractores do segredo de justiça, os autores do crime. O acessório toma o lugar do essencial.

A PGR ordenou uma auditoria. Agora um inquérito sobre a matéria do segredo de justiça. É altura de saber, com factos, juízos sobre eles, o que afinal está mal e corrigir. Recolher dados de facto de agentes judiciários e à volta não é delação nenhuma. É buscar a síntese para tomar medidas.

Nunca se viu os ora críticos voltarem-se contra o CPP que valida, há muito, a denúncia anónima.

Na verdade, é altura de saber “quem” (instituições, não pessoas), por sistema, viola o segredo de justiça: o MP para favorecer a acusação, ou outros para se defenderem e acusarem outros, desvalorizar a investigação?

Espera-se que a auditoria responda.

Procurador-Geral Adjunto

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