A grande festa sem festejos

1-Passos Coelho desdobrou-se esta semana em dizer que o Governo vai ter uma “saída limpa” do programa de assistência financeira porque quis. Seria mais verdadeiro afirmar que o fez porque pôde. Quer uma, quer outra versão justificam o desejo do primeiro-ministro de dar brilho à sua pretensa vitória.

A política, bem se sabe, é uma competição em que se ganha e se perde. E se olharmos apenas para o resultado final do ajustamento e esquecermos a devastação do país, a verdade é que Passos ganhou e os que previam o prolongamento da troika (ou seja, todos os que com realismo analisaram a situação após a demissão “irrevogável” de Paulo Portas) perderam. Mas daí a dizer que tudo se resumiu ao exercício da vontade do Governo é mais do que puro pretensiosismo. É mentira. Por isso, além de discursos, não se viram lenços brancos no suposto adeus à troika. Não houve champanhe. A Pátria não se comoveu com a reconquista da soberania.

Há uma grande diferença entre o querer uma saída limpa e poder aceder-lhe. Ninguém acredita que Passos, ou Cavaco, preferissem o embate frontal com os mercados a uma linha de crédito cautelar. Não podendo esse desejo ser cumprido por causa da falta de vontade europeia em gastar mais tempo com uns pobres rapazes do Sul, o Governo tinha ao seu dispor um mínimo de condições para seguir caminho pelo seu próprio pé. Essa é a sua vitória. Objectiva e insusceptível de paixões políticas. Os juros da dívida estão excepcionalmente baixos, o tesouro público tem reservas para um ano, os indicadores económicos acusam uma melhoria e, no fundo, no fundo, sempre se pode acreditar numa mãozinha de Bruxelas e Frankfurt caso as coisas corram mal.

E se o dilema “saída limpa”/programa cautelar não bastar para sustentar a vocação messiânica que se descobre a cada passo nos discursos do Governo, constate-se ao menos que Portugal se salvou de um segundo resgate. Quando o Presidente da República publica aquele post no Facebook num tom de claro ajuste de contas, o seu objectivo não era o confronto com o pessimismo, ou lucidez, do cidadão comum. Quando ele perguntou pelos que adivinhavam há poucos meses um novo resgate, Cavaco Silva estabelece a fronteira entre os que ganharam (grupo no qual ele estranhamente se incluiu) e os que perderam. Se o discurso cerebral, por vezes gélido, de Passos não é muito dado à picardia, Cavaco não resiste a colocar a contestação no seu devido lugar (lembram-se do seu discurso de reeleição?).

Para azar dele e do Governo, a “saída” limpa não despertou no país nem o fervor patriótico que Portas tantoexacerbou nem sequer um vestígio de júbilo. Como seria de esperar, os portugueses, sábios e manhosos, encolheram os ombros por não perceberem o que há para comemorar e por suspeitarem que qualquer gesto congratulatório podia ser interpretado como um sinal de agradecimento. Se há Governo é para os salvar das bancarrotas, de preferência a custo zero. Assim, o que poderia ser uma data histórica diluiu-se na espuma dos dias. A anomia que tomou conta do país nos ú ltimos tempos é um dos mais densos e interessantes mistérios deste tempo. Pode exprimir cinismo, talvez possa significar renúncia, mas revela decerto dúvida.

Fechada a página, Passos prepara-se para a recta final do seu mandato cultivando a aura do primeiro-ministro que “permitiu pôr o país de pé outra vez”. Esperam-no e ao país terríveis desafios. A taxa de juro que Portugal consegue (acima de países como a Austrália, com uma notação de Triplo A, como ainda esta semana observava Sarsfield Cabral no Sol) pode não passar de uma ilusão conjuntural. O Governo perdeu definitivamente o apoio da UGT. O Tribunal Constitucional analisa medidas do Orçamento que valem 1500 milhões de euros e se as chumbar poderá ter de haver um novo aumento de impostos. O simples facto de a refinaria da Galp parar por uns dias bastou para que a balança externa se voltasse a agravar. 

Passos, porém, sente-se em alta. Venha o que vier, muitos continuarão a vê-lo como o líder que sabe o que quer, o homem que não cede a pressões, o decisor implacável que corta a direito. Outros tenderão a encará-lo como uma alma insensível, sem qualquer ligação ao país, um usurpador da soberania popular a reinar sobre um povo pobre e triste. Seja qual for a perspectiva, Passos vive por estes dias o enlevo da vitória. Conseguiu uma saída limpa do programa de ajustamento porque pôde. Para um Governo cansado, até uma vitória volátil dá para uma festa.  

2- Passou uma semana e o ministro da Educação Nuno Crato nada disse sobre as conclusões de um estudo académico que apontam para o benefício de um valor, em média, nas avaliações internas dos alunos das escolas privadas em comparação com os mesmos resultados das públicas. Dizia esse estudo que o privilégio permitia aos estudantes que se candidatavam a cursos com médias elevadas como Medicina passar à frente de dezenas de concorrentes nas listas de acesso ao Ensino Superior. A serem verdadeiras (e a natureza científica do trabalho assim o indica), as discrepâncias nas avaliações internas entre as escolas privadas e públicas geram no sistema de ensino uma inaceitável situação de injustiça. Por isso não se pode compreender o silêncio do ministro Nuno Crato.

Não, desta vez não está em causa o preconceito ideológico que tende a criticar as escolas privadas apenas porque o são. Não é notícia para ninguém que os alunos das privadas tenham melhores notas nos exames nacionais. É bom que haja concorrência entre os dois sistemas. O problema é que, quando comparadas as médias dos exames onde todos concorrem em igualdade com as notas obtidas nas escolas, onde pode haver discricionariedade, se verifica o ganho de um valor nas privadas. O que se passa? A subida da nota compra-se com propinas? Neste limbo de suspeitas, ninguém fica a ganhar. Nem as escolas públicas que tenderão a ser evitadas pelos melhores alunos (e pelos filhos de famílias com maiores rendimentos), nem as escolas privadas, cuja imagem pode ficar indelevelmente manchada com o anátema da aldrabice.

Se Portugal é um estado de direito, se o poder político tem o dever se garantir a igualdade de oportunidades a todos os cidadãos, o Governo (e os partidos da oposição) não pode ficar mudo e quedo perante a denúncia de uma situação com esta ordem de gravidade. E ainda menos os sindicatos, esses eternos militantes das causas corporativas e eternos ausentes das questões da educação. Não fazer nada é aceitar de braços caídos uma situação que degrada o sentimento de colectividade, que exalta o salve-se quem puder, que acentua a sensação de injustiça social, que leva o país mais para os padrões do Terceiro Mundo e o afasta da Europa. Se o ministro da Educação se cala, que haja alguém que o faça falar. Nem que seja para dizer que esta preocupação é um disparate por falta do fundamento A, B ou C.  

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