A engenharia civil em Portugal, morreu?

O défice de engenheiros civis que agora estamos a acumular irá seguramente, a prazo, limitar a evolução e inovação no nosso espaço construído e habitado

Acabam de ser conhecidos os resultados das candidaturas de acesso ao ensino superior público e podemos constatar o desinteresse alarmante dos candidatos, que já vinha sendo evidenciado nos anos anteriores, por um dos cursos tradicionais e mais procurados das últimas décadas: engenharia civil.

Até 2011, este era um dos cursos mais estáveis nas ofertas da área científico-tecnológica, com cerca de 700 vagas por ano no ensino universitário (que eram integralmente preenchidas), e cerca de 1200 no ensino politécnico (que eram preenchidas a 70%, o que era considerado muito bom dada a proliferação de escolas e opções).

A partir de 2011, coincidindo com a entrada da troika, inicia-se uma verdadeira hecatombe no interesse por esta área científica, que conduziu à diminuição progressiva do número de vagas disponíveis que, mesmo assim, foi insuficiente para acompanhar o ritmo do ainda maior desinteresse dos candidatos e futuros alunos. Atualmente, apesar do número de vagas ter sido reduzida para cerca de 600 no ensino universitário e 500 no politécnico, o número de lugares preenchidos no universitário não ultrapassou os 26% e no politécnico foi residual a rondar os 2%. No total dos 158 candidatos que escolheram este ano a opção de engenharia civil em 1100 vagas disponibilizadas, 89 escolheram a Universidade de Lisboa, 50 a Universidade do Porto e os restantes espalharam-se em pequenos grupos por mais sete escolas, em pequenos grupos, com três delas a terem apenas um aluno.

Porquê este desinteresse? Não é despicienda a estreita relação entre a crise e o setor da construção civil, um dos mais afetados. Muitas das famílias dos candidatos terão experiência ou pelo menos consciência das consequências da crise neste setor, verdadeiro tsunami económico, com as empresas e os particulares a reduzirem o volume deste negócio para valores insustentáveis, com falências aos milhares, com a banca, em pânico, por uma recapitalização à pressão, a retirar o tapete ao setor, tentando corrigir num par de anos os exageros que fomentou durante décadas e até mesmo com o estado central a aplicar travões a fundo no investimento que levou inclusivamente à erradicação do respetivo ministério.

Mas se se trata de um ajuste deste setor da construção civil, então como se justifica que o curso de Arquitetura, continue impavidamente a fazer o pleno, preenchendo integralmente todas as vagas de todos os cursos, num total de quase um milhar de candidatos a arquitetos? A menos das diferenças intrínsecas nas duas formações, será pela perceção de um melhor posicionamento na estrutura hierárquica? Será que se trata de uma expectativa de status e imagem de liberdade tão importantes para os jovens de hoje nesta sociedade da informação e da mediatização? Será que os estereótipos do artista e do trolha estarão a influir nestas decisões? O que estará a impedir uma idêntica perceção nos cursos de engenharia civil? Seguramente, os engenheiros civis não serão tão hábeis a transmitir a mais correta imagem da sua profissão e da sua importância para a sociedade. Tal inabilidade aliada à inevitável mediatização de alguns infelizes casos públicos de desvirtualização da profissão, que felizmente são a exceção, possivelmente, têm também contribuído para a menorização desta atividade junto dos jovens candidatos. Apesar disso, a facilidade de obtenção de emprego para os recém-licenciados de engenharia civil continua a ser ainda bastante superior à dos de arquitetura, contribuindo para tal a abrangência das valências adquiridas num curso de banda larga.

Não será esta, uma das profissões basilares de uma sociedade? Já não é de agora que, a par com a saúde, o direito e a economia, as engenharias em geral e a civil em particular como a mais antiga, sempre constituíram um corpo de profissionais focados na resolução dos problemas da população. E não se pense que ser engenheiro civil é só construir casas ou prédios. E os edifícios públicos? E as pontes? E as barragens? E os portos? E os aeroportos? E as vias de comunicação (rodoviárias e ferroviárias)? E as infraestruturas hidráulicas e de transporte de energia? Já estarão todos estes equipamentos devidamente dimensionados e distribuídos pelo nosso território para servir equilibradamente a população? E o planeamento e a gestão urbana? E a reabilitação do património? E a manutenção e recuperação do espaço construído, muito dele com o tempo e vida útil já ultrapassado? E a imperiosa necessidade de o fazermos numa lógica ecológica e de sustentabilidade? Será que, de repente, se tudo isto deixar de ser cuidado, com regularidade, as condições de vida não se começarão a degradar?

Lembro que o nosso país tem história e pergaminhos na construção de um ensino de engenharia de excelência através de escolas especializadas e também da prática profissional, para a qual contribuíram grandes empresas e que elevaram o nome da engenharia civil portuguesa aquém e além-fronteiras. Não é possível formar plenamente engenheiros civis que não tenham tido a oportunidade de integrar, desde a infância, um sistema de ensino competente e abrangente, ou que não tenham sido motivados à participação cívica, social ou cultural. Apesar da degradação generalizada deste sistema de educação integrado, felizmente, em Portugal, ainda vamos tendo as condições suficientes, que nos distinguem nesta formação. Infelizmente, concomitante com esta crise, o êxodo da maioria dos nossos profissionais de engenharia civil, a desmobilização dos corpos docentes e o consequente atropelo na qualidade do ensino e da investigação nesta área, têm devastado este património científico e intelectual que poucos países se podem vangloriar de ter conseguido construir e que, inusitadamente, num ápice, se desvanece e desintegra.

Portugal e os portugueses, em muitas circunstâncias, viveram acima de um patamar de equilíbrio regrado, criando uma expectativa de qualidade e condições de vida da qual agora temos que abdicar e reduzir ajustando-nos para níveis inferiores. Porventura a engenharia civil está no nosso país a sofrer essas dores de ajuste. No entanto, não tenham ilusões. A engenharia civil, é necessária em qualquer país e em qualquer sociedade. Assim tenhamos a capacidade de o compreender o quanto antes, senão, perante os parcos engenheiros civis que se formarão daqui a 5 anos, perante um mercado ávido das suas competências e especificidades, porventura podemos vir a ser forçados a ir buscar arquitetos e outros técnicos afins para preencherem lugares para os quais não foram especificamente preparados. Ao contrário da inócua extinção dos acendedores dos candeeiros a gás do século passado, este défice de engenheiros civis que agora estamos a acumular irá seguramente, a prazo, limitar a evolução e inovação no nosso espaço construído e habitado e contribuir para um degradar das condições de vida no dia-a-dia em Portugal.

Engenheiro Civil

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