“A direcção do PS seria outra coisa se tivéssemos António Costa”

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“A direcção do PS seria outra coisa se tivéssemos António Costa” Andreia Sanches, Bárbara Reis, Vera Moutinho

"Achar que um governante pode mudar todo o quadro de regras de funcionamento de um país” tem pouco a ver com democracia, diz Maria de Lurdes Rodrigues. "Tem mais a ver com regimes autoritários."

Disse, numa entrevista que deu ao PÚBLICO em 2008, ano marcado por grandes manifestações de professores: "Tem-se dito que não se fazem as reformas sem os profissionais, mas a história ensina-nos que não se fazem com". Numa altura em que tanto se fala da necessidade de reformar, como ficamos? As reformas fazem-se mobilizando, ou não, os que trabalham nos diferentes sectores do Estado?
Depende muito de sector para sector.

Há pessoas que dizem que não se muda o mundo com leis. Sim, as leis não são suficientes. Mas qual é a alternativa? Se não mudarmos com leis, mudamos com guerra? Com coacção?

Mas muda-se o mundo com leis. O voto das mulheres, a escravatura...
Exactamente. É com leis que se muda o mundo e essa é a melhor maneira de mudar o mundo porque o que a História nos mostra é que todas as outras formas são piores. E, portanto, no que respeita ao envolvimento dos diferentes actores neste processo de mudança, a História, o que nos mostra, é que muitos processos de mudança se fizeram contra os interesses e que, em outros, houve o envolvimento dos interesses. Não há uma norma única e na Educação há imensos exemplos: a escolaridade obrigatória, por exemplo. É uma lei, uma norma, que, quando é instituída, vai contra os interesses das famílias, não se faz com as famílias. A massificação do acesso ao ensino faz-se contra as famílias. Não há muitos anos, a GNR ainda ia a casa das crianças buscá-las para as levar para a escola, o que mostra como as grandes mudanças não se fazem com o envolvimento dos interessados.

A Educação é a área mais difícil de reformar?
Quando se olha em perspectiva, não acho. Fizemos um progresso notável. Com a mesma escola que temos hoje, em alguns casos a mesma escola física, fizemos a passagem do Estado Novo, em que a única coisa que tínhamos era a 4.ª classe, com uma rede de escolas espalhadas pelas aldeias, de professores, nalguns casos, com pouca preparação, com a caixinha dos sólidos e os mapas, as réguas, tudo igual, de Norte a Sul. E nós conseguimos constituir em cima dessa herança um património excepcional, as escolas do 2.º ciclo e do 3.º, e do secundário, depois o ensino profissional, formação e profissionalização de professores, a partir de certa altura já com os sindicatos envolvidos nestes processos de mudança, já com as universidades...

Sente que é uma reformista?
Não penso em mim nesses termos. Sinto sempre que sou Maria de Lurdes Rodrigues. Não sei...

Olho para trás, penso no trabalho que fui fazendo, nos projectos que fui desenvolvendo e acho que me oriento muito pela concretização. Gosto de ter ideias mas também da oportunidade de as concretizar. Gosto desse lado da vida de construir, de fazer. Fazer. Ter projectos, concretizá-los e ao fim de três anos dizer: "Está feito."

A medida que tomou como ministra que mais contestação gerou foi o modelo de avaliação dos professores. Tentou pô-lo em prática sem o apoio dos professores, contra os professores. Conseguiu? Esse modelo perdurou?
Ficou a ideia da avaliação. A ideia de que era preciso uma avaliação com consequências, essa ficou. Não sei se na prática está em vigor nas escolas, isso sinceramente não sei.

O ciclo do meu mandato foi muito longo. E a própria ideia de avaliação teve um percurso. Acho que a questão mais crítica no caso dos professores são as suas consequências. Mas toda a mudança que se fez no Estatuto da Carreira Docente (ECD) não posso dizer que a tenha feito contra os professores ou sem os professores, ou até sem a auscultação de outras forças políticas. Foi um processo muito mais negociado do que no final parecia ter sido, envolvendo até o PSD no desenho de algumas das soluções, nomeadamente na estruturação vertical da carreira, etc... mas depois a política também tem as suas conjunturas.

O modelo que deixou não foi o que queria?
Não sei, a minha ideia era que a avaliação tivesse consequências e que os professores deixassem de progredir na carreira apenas com base no número de anos de serviço e independentemente de estarem ao serviço ou não, com base na mera contagem dos dias de trabalho.... agora nem sei como é... mas era assim.

Como é que se muda este problema cultural de cada político querer deixar a sua marca e fazer reformas totais?
Na educação isto é novo. Se fizer o estudo da evolução das políticas educativas vai encontrar uma continuidade.

Mas a quantidade de vezes que os programas mudam…
Não é verdade. Os programas que estavam em vigor quando eu cheguei eram de 1989, do tempo de Roberto Carneiro. Alterou-se o currículo em 2000/2001, mas os programas mantiveram-se intactos. É uma percepção pública que eu aceito que existe, mas que está desajustada. No pré-escolar nunca mais ninguém mudou o pré-escolar [desde Marçal Grilo]. Há uma continuidade e um esforço no mesmo sentido: mais alunos, mais tempo na escola, mais serviços educativos.

No livro que acaba de lançar, Políticas Públicas para a Reforma do Estado, com Pedro Adão e Silva, conclui-se que tudo está errado na actual reforma do Estado — ou que não é sequer uma reforma. O que é que teria feito de forma substancialmente diferente?
Estudar o que está feito, olhar para trás, recolher informação e conhecer muito bem o que foi feito, a herança que tem, aquilo que é a trajectória, o legado. Não tem sentido introduzir qualquer mudança sem conhecer o legado. Os riscos de desperdício e de inflexão de trajectórias que até são positivas é muito grande. O primeiro ingrediente é conhecer, é ter informação, é saber. E depois há as comparações internacionais, o que se faz lá fora, o que pode ser inspirador, quais as grandes metas e objectivos que podemos alcançar.

Na sua avaliação nada disso foi feito?
Não. Sobretudo — e é uma marca deste Governo — há um enorme desprezo pelo legado, a ideia de que em dois anos se muda o país. Ouvi coisas muito preocupantes: que era um erro que o Tribunal Constitucional pudesse proteger "coisas como o Serviço Nacional de Saúde". Que os governos deviam poder destruir o SNS porque no final da legislatura seriam avaliados e o Governo seguinte poderia reconstruir. Ora isto é não saber nada de Estado, não saber nada de instituições públicas. Uma instituição como o SNS demora 30 anos a construir, exige a formação de médicos, a construção de hospitais, de sistemas, afectação de recursos. Não se faz em quatro anos, não é o tempo de uma legislatura.

Ter a noção de que isto pode ser destruído, que tanto faz, que podemos destruir o SNS porque no final vamos avaliar o Governo e no ano seguinte outro Governo constrói, é não saber nada daquilo que se está a falar, é não saber nada de política, não saber nada de instituições, e não saber nada de História, é não saber nada de nada. É de uma leviandade, de uma ligeireza... Achar que um governante, só porque ganhou as eleições, pode mudar todo o quadro de regras de funcionamento de um país é algo que não tem que ver com democracia, tem mais que ver com regimes autoritários.

É necessário um compromisso supra-partidário…
Um compromisso e um conhecimento. Se fossem um pouco mais conhecedores das matérias sobre as quais estão a intervir e os efeitos da sua acção isso já era um elemento importante para os pôr em guarda. E depois há a humildade, a negociação e o compromisso: perceber que mesmo que eu tenha uma ideia muito boa, ela vai ter que ser confrontada com a realidade e com as visões dos outros e que eu tenho de negociar.

A si dirão que nunca lhe viram humildade… na oposição é fácil pedir humildade aos líderes.
Não é verdade. Quando olha para a política educativa daqueles anos verificará que a maioria das medidas foram consensualizadas e respondiam às expectativas de outros agentes. Não teve nenhuma contestação às Novas Oportunidades, aos cursos profissionais, à construção dos centros escolar, à Parque Escolar. E foram programas lançados sempre no conhecimento e no respeito daquilo que era o legado.

Um pacto pós-troika é importante e, se sim, ainda vamos a tempo?
Devia estar em permanência na agenda. Esta crise abalou muitas das nossas instituições. Um dos balanços que vamos ter de fazer é definir qual é o nosso novo ponto de partida.

Durante 30 anos construímos uma sociedade para resolver alguns problemas — o do crescimento económico, o das desigualdade, o do défice de qualificação, alguns que entram mais tarde na agenda, como a dependência energética. Quando olha para trás percebe que o país faz um esforço, que há gerações e gerações de portugueses que se sacrificaram para termos as escolas que temos, para que os seus filhos pudessem ir para a universidade. Isto é um esforço colectivo.

Se o país vai ser outra coisa, não pode ser uma decisão de um governo, tem de resultar de um debate público, de uma consciência do que é essa outra coisa que vamos ser.

Concorda com os críticos do PS que acusam o partido e o seu líder de fazerem uma oposição frágil?
Não gosto de funalizar. O que vejo é uma ausência de PS em momentos absolutamente críticos e decisivos, uma ausência da direcção do PS que, por qualquer razão, se abstém e se remete ao silêncio, nunca explicando aos portugueses o que pensa sobre os problemas que afligem as pessoas. Vejo como uma dificuldade para que o PS se possa apresentar como alternativa.

É sintomático que, perante os resultados do PISA — que nos inspira confiança uma vez que os resultados melhoraram — não haver nada para dizer. O ministro não ter nada para dizer, o líder da oposição não ter nada para dizer, uma matéria que diz tanto às pessoas, um milhão e meio de jovens que temos na escola, todas as famílias estão interessadas em ouvir alguma coisa sobre o que isto significa. Nada. E outros problemas graves. E há um silêncio que nos deixa na dúvida sobre se é uma ausência de programa, de alternativa, de solução, ou se é pura táctica política. Há uma ausência de direcção do PS na resposta aos problemas que as pessoas sentem. A dificuldade é não se perceber o que é que vai de facto ser diferente se o PS ganhar as próximas eleições, como eu espero que ganhe. Era preciso que fosse evidente.

Está a pedir uma liderança diferente. Está a falar de António Costa?
Não pensei muito sobre isso... Acho que as lideranças podem fazer a diferença. A direcção do PS seria outra coisa se, em lugar de António José Seguro, tivéssemos António Costa. Estas coisas não têm nada de pessoal, porque desse ponto de visto são ambos pessoas estimáveis. Tenho estima e consideração por ambos. Mas, de facto, António Costa revela uma capacidade de liderança, de concretização, de afirmação explícita do que pensa sobre as várias matérias — podemos concordar ou não, mas ele tem uma opinião e transmite-a de uma forma clara. E essa firmeza beneficiaria o PS na afirmação de uma alternativa ao actual governo.

Naquela noite, quando se pensou que Costa ia avançar, telefonou-lhe a lamentar o não-avanço?
Não, não telefonei... 

Mas ficou triste.
Gostava que tivesse havido uma mudança, de facto gostava. 

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