A chaleira furada

O enorme problema do não aumento das receitas em 0,1%, é, como já se percebeu, um outro problema.

Para quem não conhece a história da chaleira furada, ela conta-se muito rapidamente. Um homem é acusado por um vizinho de lhe ter devolvido uma chaleira furada. Confrontado com o defeito, o incriminado apresenta três argumentos para refutar a acusação: nunca chegou a pedir a chaleira emprestada, quando a levou já estava furada, quando a devolveu estava em perfeitas condições.

Se olharmos com atenção para alguns discursos é interessante encontrar falácias argumentativas semelhantes. Veja-se o caso do argumento apresentado recentemente pelo Conselho de Reitores como protesto perante o não aumento das propinas: é inaceitável (porque, embora seja um valor insignificante para os alunos, ele é muito significativo para as instituições), se o aceitarem vão ter de fazer cortes (com os inevitáveis despedimentos logo à cabeça), são aceitáveis num novo modelo de funcionamento das instituições (com uma menor participação direta das famílias e uma maior participação do estado).

Do totalmente impraticável e inaceitável chegamos ao possível, contudo, como este poderia por em causa o modelo e isso é inaceitável (pelas razões óbvias que tudo obviam) regressamos ao primeiro ponto.

Geralmente, este é o típico debate em que alguém resolve bramir com a simplória metáfora matemática do 2+2. O fascínio por esta conta poderia substituir-se por outra mais interessante, em que o um divide-se em dois. Como a subtileza da segunda dificilmente pode ser captada por quem intransigentemente defende a primeira, falemos então de números.

As propostas para o Orçamento de Estado implicam um não aumento de 0,5%, numa parte que representa 20% das receitas, ou seja, um não aumento de receitas de 0,1%. Não se trata de nenhum corte. Este não crescimento das receitas em 0,1%, por questões de atenção à situação social, é considerado como intolerável pelos mesmos reitores que não encerraram nenhuma universidade quando os cortes atingiram o valor de 30%.

O que é roubar um banco comparado com (a)fundar um banco? As questões de elevação académica levariam a que não confundíssemos bancos com cátedras (muito menos com Brecht). Mas é justamente nessa placidez que a ideologia tem operado.

No comentário ao prolongamento do regime transitório no universitário, surgiu inevitavelmente a velha estratégia de lançar a indignação sobre o outro, aquele que rouba o gozo dos demais. Uma manobra de cinismo descarado de quem, por inação, interesse ou incapacidade, tem vindo a manter um sistema baseado na precariedade, que alcança mais de dois terços do pessoal dedicado à investigação, quase metade daqueles que dão aulas e um crescendo número de bolseiros a realizar trabalho administrativo (chegando ao ponto de os colocarem a cobrar propinas). São milhares de pessoas neste sistema.

Entretanto, mantém-se o silêncio estratégico sobre a flexibilização do emprego científico, alimentando a possibilidade de uma carreira paralela, feita de milhares de contratados a termo, com as habituais colaborações mais ou menos pontuais na lecionação.

E sobre tudo isto vão se tentando outros argumentos: os números não existem; é um problema que vem do passado; quando nós gerimos autonomamente tudo corre em perfeitas condições.

Autonomia presente nos casos em que, quando os contratos efetuados ao abrigo do Código do Trabalho alcançam o número de renovações previstas para lugar a contratação sem termo, fazem-se contratos a termo ao abrigo da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas, para que a precariedade dure mais algum tempo.

Autonomia que nunca foi utilizada para a reposição salarial daqueles que passam pela prova académica mais difícil, que significa a aprovação de um sedimentado percurso de investigação.

Autonomia que é utilizada para se dizer aos professores convidados mais jovens que, por estarem numa universidade-fundação, não estão abrangidos pelos estatutos de carreira, logo, os seus direitos não existem.

Perante o problema óbvio do modelo presente, que podemos ver de longe entre os 1,3 biliões de dólares de dívida dos estudantes americanos, aos documentados efeitos da desigualdade no acesso ao ensino superior em ambos os lados do Atlântico, a resposta mantém-se igual.

O enorme problema do não aumento das receitas em 0,1%, é, como já se percebeu, um outro problema. É o pequeno grande problema de quem tem o poder.

Os estudantes têm toda a razão em ficarem indignados com reitores assim. Os professores universitários e os investigadores não menos.

Professor e vice-presidente da direcção do SNESup

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