A campanha atolada na era Sócrates

A semana começou com a memória da “claustrofobia democrática” e acabou com a revisão em baixa da medida de coacção aplicada a José Sócrates. A quatro semanas das eleições, o país patina numa campanha abúlica e inócua e faz da revisitação do passado o seu modo de vida. Nos próximos dias, a pizza entregue pelo estafeta na casa onde o ex-primeiro ministro está em prisão domiciliária vai sobrepor-se à política fiscal, perguntar a António Costa se vai e, se for, quando vai visitar José Sócrates há-de ser mais importante do que o futuro da Segurança Social. Há neste absurdo uma fatalidade, mas ainda mais uma resignação. Portugal mostra-se nestas vésperas das legislativas um país cansado, descrente e indeciso sobre se o mal menor é Passos Coelho ou algum dos seus adversários.

A saga de José Sócrates quebra esta interpelação anódina — sempre tem uma carga de drama e de tragédia, sempre permite discussões sobre a culpa ou a inocência, com dinheiro debaixo da mesa, vidas de luxo ou exílios em casas modestas com obras poeirentas à porta.

Discute-se então se a nova medida de coacção imposta ao ex-primeiro-ministro vai condicionar a campanha. Claro que vai, pelo menos nos próximos dias, até que o voyeurismo se esgote nas infinitas reportagens em directo onde se diz nada sobre coisa alguma, uma espécie de Évora parte II. É óbvio que, nos interstícios do discurso “à justiça o que é da justiça, à política o que é da política” a coligação que sustenta o Governo não perderá uma oportunidade para explorar o temperamento irascível de José Sócrates, impelindo-o a sair da toca e forçando-o a aparecer na campanha como um espectro criado para afligir o PS. E é seguro que António Costa tenderá a conservar um silêncio forçado sobre a nova etapa judicial do caso e a evitar ainda mais que muitas e estimáveis figuras do partido associadas aos anos do Governo Sócrates apareçam na televisão como espantalhos dos indecisos.

Nada disto quer dizer que Sócrates vá ser um elemento primordial nas escolhas do eleitorado. Há dez meses que os portugueses sabem o que está em causa. Já tiveram tempo para formular as suas certezas e ainda mais as suas dúvidas sobre o que poderá ter-se passado. Há muito tempo que se puderam posicionar e o que aconteceu nesta sexta-feira à noite não é suficientemente profundo nem dramático para mudar o que quer que seja. Mas mesmo que Sócrates não seja um sujeito da campanha, aparecerá como um predicado de si próprio. Porque aquilo que está a acontecer no debate político não está centrado no que queremos para os próximos quatro anos; foge vezes demais para o que nos aconteceu antes da troika nos “pôr na ordem”. E aí, sim, Sócrates é o melhor ponta de lança dos interesses da coligação. Como o próprio disse logo após a sua prisão, em Novembro do ano passado, “qualquer envolvimento do Partido Socialista só me prejudicaria, prejudicaria o partido e prejudicaria a democracia”.

A campanha tornou-se assim um imenso artifício e qualquer acção que tenha Sócrates como protagonista só servirá para a alimentar. O Bloco e o Partido Comunista vivem enlevados na rotina dos seus discursos ferrugentos e desistiram de ousar até novos formatos para apresentar as suas velhas propostas. Os partidos da Coligação exploram os rendimentos da era Sócrates, dão-se ao luxo de não apresentar uma, uma única, ideia para o futuro e têm o desplante de mandar perguntar pelas contas da Segurança Social ao PS quando, eles próprios, assumidamente, nada têm para dizer sobre o assunto. E António Costa trata de sobreviver à sua errância sem ser capaz de mostrar que tem um programa, deixando-se cair no argumento tonto e gasto de que a sua missão na Terra é acabar com a austeridade e decretar o crescimento — uma “história infantil”, como bem Passos Coelho definiu.

É por haver este vazio a potenciar a crença de que “eles são todos iguais” que José Sócrates e o seu passado político têm tanta margem de sucesso. Há um rosto para as PPP, para a ostentação de um certo país que se reflectia em fatos reluzentes e gravatas estilosas, para as teias de cumplicidade de uma rede de interesses que ia da banca aos gabinetes dos ministros, para a pressão ilegítima sobre os jornalistas, para a fanfarronice que nos levou ao limiar da bancarrota. Mas não há um rosto para as privatizações apressadas, para as muitas dezenas de milhares de pessoas que perderam o emprego, para o Citius, para o naufrágio do caso dos submarinos ou para o fracasso iminente do Novo Banco. Sócrates vai ser nos próximos dias o monstro que exalta os dotes da bela, o termo de referência que dispensa a análise dos quatro anos de Passos Coelho e de Paulo Portas.

Não se trata de dizer que, se o espelho fosse invertido, veríamos hoje, outra vez, o drama dessa década terrível que começou com a saída do pântano de Guterres, continuou com a fuga mesquinha, cobarde e interesseira para Bruxelas de Durão Barroso, com o devaneio de Santana e culminou nos anos de chumbo de Sócrates. Por muito que custe a Pacheco Pereira, o país mudou e em alguns aspectos para melhor. Como dizia Paulo Rangel antes de se estatelar na desastrada ligação do Governo ao inquérito a Sócrates, “sob o ponto de vista do Estado de Direito, o ar é hoje bem mais respirável do que era em 2009 e em 2011”. Até porque neste particular, pode haver uma comparação. Mas não chega. É de exigir aos partidos do Governo que vão a jogo sobre aquilo que está em discussão: os próximos quatro anos. É de dizer ao primeiro-ministro que é lamentável essa sua convicção de que não tem de ir a debates, que é deplorável esse seu propósito de querer ganhar umas eleições sem dizer preto-no-branco coisas simples, como a de saber se há alguma possibilidade de Portugal ter algum desígnio, alguma ambição, ou se com ele tudo se vai resumir ao rigor das contas públicas versão 2.0.

Faltam quatro semanas de campanha e talvez alguma coisa mude — ou talvez não, basta que Sócrates decida dar entrevistas a eito. Afinal, entre o mais do mesmo púdico e defensivo do Governo e o mais do mesmo com janelas abertas e um período de tréguas de três anos do PS, entre a mudança radical do Bloco e da CDU e essa lufada de ar fresco nas propostas (idílicas, note-se) e nos métodos do Livre, os portugueses têm muito por onde discutir, analisar e escolher. Mas para que isso aconteça seria importante que fôssemos capazes de olhar um pouco menos para o passado de Sócrates, um pouco mais para o presente de Passos e muito mais para o futuro do país. Já sabemos o que se passou, já houve eleições entretanto, já pagamos amargamente os custos dos excessos e estamos fartos de patinar na lama do costume. Haverá por aí algum líder a sério para pôr a campanha a andar?

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