25 de Abril, salas de aula – contributo para uma reflexão

Não estaremos nós perante a inescapável realidade de um sistema global que propositadamente anulou as diferenças reais entre quem aprende e quem ensina?

Dois livros de Maria Filomena Mónica, intitulados A Sala de Aula e Diário de Uma Sala de Aula, com chancela da Fundação Francisco Manuel dos Santos, recém-publicados, pretendem ser um contributo para que se evite aquilo a que, nas palavras da sua autora, é o “colapso do sistema educativo”.

Num artigo do PÚBLICO, de 20 de Março, a manchete era suficientemente alarmante, justificando debate sério: “Escola pública não dá garantias de ensinar os alunos a ler e a contar.” É uma das conclusões a que, na sua investigação, chega Maria Filomena Mónica. As causas, diz, são várias: a sala de aula reflecte, no fundo, a decadência a que chegámos. O diagnóstico – e este é mais um, a ter em conta – está feito. Mas os erros sucedem-se e repetem-se, como se cada ministro desconhecesse em absoluto o resultado de políticas anteriores.

Maria Filomena Mónica não hesita, e bem, em apontar os erros a quem tutelou a pasta da Educação, desde 1974. Depois do Estado Novo, as escolas e os docentes não estavam preparados para a entrada de uma massa de alunos para os quais a escola nada significava. É certo que o abandono escolar era, em 1974, uma realidade cruel, acrescida de uma taxa de analfabetismo que rondava os 35%. Os professores, diz-se nestes dois livros, estariam habituados a ensinar os filhos das classes mais abastadas, não os filhos das classes médias. Com sucessivos ministros empenhados em debitar leis, decretos e portarias, e outros documentos de um rigorismo ininteligível, a profissão docente, passados quarenta anos, é hoje o quê? Em síntese: uma profissão que se burocratizou. Em tese: uma profissão que nada tem que ver com a transmissão dos saberes. Formata-se, não se educa; padroniza-se, não se aprofundam conteúdos inter e transdisciplinares. Não admira que, maioritariamente, os alunos, do secundário à universidade, deplorem os currículos que emanam do ministério.

As aulas são, como escreve uma aluna, mais ou menos isto: “Barulho (vozes, risos, cadeiras e mesas arrastadas) [...], há pessoas sentadas nos parapeitos das janelas – com os pés em cima das cadeiras onde deveriam estar sentadas – a conversar.” Espelho da mentalidade vazia que grassa por entre docentes e discentes? A sala de aula reflecte a degradação (depravação, diria Cesário!) dos usos e costumes? Sim. Num dos diários que Maria Filomena Mónica analisa, lê-se: “Duas alunas pintam as unhas e quatro desenham gráficos nos diários. Um grupo joga às cartas. [...] Os telemóveis não param de tocar.” A socióloga, em face da realidade escolar, sintetiza: “É uma escola criminosa, indigna, estúpida. Que não suscita a curiosidade para aprender, que não ensina as crianças a pensar. [...] Tornou-se um desperdício de dinheiro.” Maria Filomena Mónica, ao aplicar uma adjectivação dura e directa – a escola é “criminosa”, “indigna”, estúpida”, é o lugar onde não se pensa –, vem dar força ao que, noutros momentos, foram meras constatações de quem, como professor, não ignora o que, agora, se diagnostica.

Mas, problematizando, essa escola que não se soube preparar para acolher, depois de 1974, as massas; essa escola onde hoje a classe docente não tem qualquer poder, não será, além de vítima das sucessivas medidas ministeriais, causadora da sua própria degradação? É certo que, enquanto instituição que deveria zelar por uma sólida formação, a escola nem ensina a ler nem ensina a contar. Oiçamos a Maria Filomena Mónica: “A cultura que os alunos adquirem ao longo de 12 anos é má. Há a ideia de que a escola tem de dar coisas que os alunos compreendem facilmente, como as telenovelas, os discos da Taylor Swift ou os livros do Harry Potter. Simplesmente para isso eles [os alunos] não precisam da escola.” A consequência é simples: os alunos que frequentam a escolaridade obrigatória “mal sabem ler e muito menos sabem interpretar o que lêem ou construir frases com sujeito, predicado e complemento”. A pergunta impõe-se: se os nossos alunos não sabem sequer o elementar, tal fica a dever-se exactamente a quê? Ao facto de os professores não terem tempo para a investigação e para a leitura? Eventualmente. Mas, sejamos francos, se os alunos não sabem ler e escrever, interpretar (inferir!), tal não resulta também da má preparação científica de quem ensina? Ninguém desmente que o ministério desconhece o terreno social em que interagem professores e alunos. Deixar em paz quem ensina, libertar a docência da profusão de regras e da burocracia, eis uma medida que qualquer ministro sensato deveria tomar. A par disso seria bom que as acções de formação, que tantos professores frequentam, fossem sobre leccionação de conteúdos insertos nos curricula e não acções sobre Powerpoint, sobre “estratégias de motivação” e “avaliação”, eufemismo para designar, no fundo, acções de formação que visam, de facto, padronizar os professores, formatá-los de modo a que a escola seja uma instituição que certifica, via exames, uma suposta aprendizagem de competências...

Entre 1974 e 2014, o que se fomentou foi, a meu ver, um pedagogismo de tal modo provinciano que ensinar é, sobretudo, “inventar estratégias”. O ranking escolar é paradigmático quanto à ideologia mecanicista que se impôs. Uma lógica de concurso, eis a que levaram os exames, com a concomitante – e nefasta – consequência entre estudantes e escolas, a saber: a desenfreada competitividade, corrompendo o espírito do acto de ensinar. A ideologia oca do nosso sistema de ensino mascara o vazio das aprendizagens com a aridez dos currículos e a subsequente ideia do professor como alguém que deve ser um “técnico” ou, quando não, do entertainer. Tal acontece por culpa do ministério? Sem dúvida. Retirou-se à figura docente o poder simbólico do saber e, sintomaticamente, falar-se hoje do professor como mestre pode levar ao escárnio. A mentalidade reinante que vê no docente ora um entertainer, ora um “técnico da educação” desvirtuou também a figura do professor. Reduziu-se, assim, o acto de ensinar à mera elaboração de fichas preparatórias para exame. Dar respostas-tipo, eis o que também desmotiva muitos professores que não se revêem no mercado lógico em que o ensino se tornou.

Queixam-se os professores, e com razão, da carga horária; dos programas escolares impraticáveis, seja pela extensão, seja pelo ridículo de muitas propostas didáctico-pedagógicas. Queixam-se das turmas com excessivos alunos e da lógica dos agrupamentos, não se percebendo que as diferentes fases do crescimento sociocognitivo de crianças não se compagina com a amálgama, a barafunda a que os agrupamentos levam. Lamentamo-nos de os alunos falarem e escreverem um português de caserna... Mas não estaremos nós perante a inescapável realidade de um sistema global que propositadamente anulou as diferenças reais entre quem aprende e quem ensina? Não espanta. Educados por uma televisão ditatorialmente banal, vítimas de uma cultura onde impera a vaidade, a tirania da ignorância e a boçalidade, os nossos estudantes sabem bem o que é andar na escola: é fazer cultura de café, é o jogar às cartas, o pintar as unhas. E, muitos deles nos perguntam, com dedo acusador: “De que me serve, se tudo é secante, andar na escola e empenhar-me?”

Professor e crítico literário

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