Ulrich Beck tem uma receita para salvar a Europa: construí-la de baixo para cima

Um dos mais influentes pensadores da actualidade abriu o VIII Congresso Português de Sociologia, que esta segunda-feira começou em Évora.

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A União desenvolveu-se “através da cooperação transnacional das elites”, diz o sociólogo alemão AFP

Pediram-lhe que trouxesse uma reflexão sobre a Europa à abertura do VIII Congresso Português de Sociologia, esta segunda-feira, na Universidade de Évora, e Ulrich Beck levantou a questão “crucial”: “Como pode a Europa garantir a paz e a liberdade dos cidadãos face a velhas e novas ameaças e, desta forma, ganhar o apoio dos eurocépticos para um novo ‘sonho europeu’”?

O professor da Universidade de Munique, um dos mais influentes pensadores da actualidade, começou por lançar uma pergunta “simples” à plateia repleta de sociólogos: “O que é a Europa?” “Na verdade, na verdade, não há ‘Europa’; há europeização, um processo de transformação em curso”, avisou, conforme o discurso preparado a que o PÚBLICO teve acesso.

A ambivalência, explicou, marca a história comunitária. Por um lado, a União “permitiu à Europa libertar-se da sombra projectada pela sua história sangrenta”. Por outro, criou uma “Europa de efeitos colaterais”, que “vira a vida das pessoas de cabeça para baixo e, desse modo, provoca resistência nacional e étnica”.

O sociólogo alemão acha espantoso que o processo de integração europeia não siga um guião. A europeização é improvisada. E durante algum tempo a política de efeitos colaterais até parecia ter vantagens para quem a dirigia: “Não exigia programa político independente ou legitimação política”. A União desenvolveu-se “através da cooperação transnacional das elites com os seus próprios critérios de racionalidade”. O resultado, diz, está à vista: “uma Europa sem europeus”. E o reverso, em tempo de crise, não é um movimento pró-europeu, mas anti-europeu.

Os movimentos anti-europeus, defendeu o também professor da London School of Economics, estão a instrumentalizar as contradições deste processo. Não atacam apenas os muçulmanos ou os estrangeiros, também as “elites liberais”, que, na opinião de muitos, estão a destruir as identidades nacionais: acusam-nas de terem permitido a entrada de estrangeiros e de terem criado “a “União Europeia - essa abstracção demoníaca - e o Estado social no qual os outsiders estão a tentar sentir-se em casa”.

Ulrich Beck  encontra contradição neste sentimento anti-europeu. Apoiantes do partido anti-europeu UKIP, exemplificou, querem que a Grã-Bretanha se transforme numa espécie de Hong Kong. Ora, “o que quer que isso signifique até poderia ser bom para Londres, mas certamente seria um desastre para a província, onde a maioria dos seus eleitores vive”. O sociólogo enfatiza o paradoxo: “Nem o Sr. Wilders [nos Países Baixos]  nem Le Pen [em França] vão proteger os mais vulneráveis das forças do mercado global”.

Na sua opinião, se as elites querem acabar com esta “tempestade de ódio destrutivo, têm de ter alguma ideia de metamorfose social da Europa”. “Um sinal importante poderia ser - para pegar no Manifesto Português de Março de 2014 - pedir mais tempo para a integração económica, enquanto a Europa dá alguns passos para uma política fiscal e para uma política de investimento social comuns”, indicou.

Em seu entender, poder-se-ia “começar com medidas modestas” relacionados com protecção social, como o rendimento mínimo ou o subsídio de desemprego. E avançar para programas destinados a “actualizar as capacidades dos trabalhadores pouco qualificados”, sinal de que “a Europa a partir de agora iria construir a sua competitividade com base na competência - e não nos salários baixos.”

“Como pode a Europa superar a sua actual crise de convivência?”, perguntou. Há algo na Europa que a torne “sexy”? Hoje, é preciso ter uma visão cosmopolita até para perceber o desespero que fervilha nos subúrbios e transborda para os protestos anti-europeus. Por todo lado há pluralidade cultural - resultado dos fluxos migratórios, da Internet, das alterações climatéricas, da crise, das ameaças digitais.

À medida que a globalização vai esbatendo as velhas fronteiras, há quem procure novas. “Quem enveredar pela via nacionalista - e isso aplica-se não só a [Vladimir] Putin [Presidente da Rússia], mas de alguma maneira também ao Reino Unido, à direita e à esquerda anti-europeista na França e em toda parte - mais uma vez evoca a auto- destruição da Europa”, avisa.

Focando-se na Ucrânia, Ulrich Beck falou em “consequência paradoxal: a agressão étnico-nacionalista de Putin não é apenas assustadora para o Ocidente. É também unificadora. A chanceler alemã, Angela Merkel, usou uma notável e clara linguagem diplomática. Ela acusou a Rússia de recorrer à `lei da selva’ no conflito com a Ucrânia. Ela disse que, se a Rússia continuar com esta agressão, ‘nós, os Estados vizinhos, entenderemos isso como uma ameaça contra nós’.”

Merkel enfrenta agora uma escolha fulcral: agir de acordo com o interesse alemão ou “fazer valer a sua posição de liderança na UE e forjar uma resposta europeia unida, resgatando a solidariedade europeia, que foi tão violada com a crise do Euro”? Isso, referiu, “poderia ser um passo para superar a divisão da Europa”, mas não basta. A Europa dos efeitos colaterais precisa de uma europeização construída de baixo para cima, receita. Impõe-se “construir uma sociedade civil europeia forte baseada na participação e na identificação dos cidadãos europeus com o futuro da Europa”.

Voltar às bases, implica assumir o ponto de vista do indivíduo europeizado. E para esses a questão agora é: qual é o propósito da União Europeia? O que ganharia eu com uma Europa diferente? Em primeiro lugar, valerá a pena recordar-lhes “a história de sucesso da UE, que é uma história sobre  inimigos que se tornam vizinhos”. O que a Rússia está fazer pode “reavivar o poder de criação de paz e significado da EU”. Em segundo lugar, há que pensar não só noutra Europa, mas também na próxima etapa da metamorfose europeia: como é que as nações da Europa passam de uma postura “étnico-territorial” para uma “auto-compreensão cosmopolita de nacionalidade”.

Para Ulrich Beck, há que compreender também que “a modernidade europeia, que tem sido difundido em todo o mundo, é um projecto suicida” - produz “problemas básicos, tais como as alterações climáticas e as crises financeiras”. E há que ir para lá da livre circulação de pessoas, apostar na promoção de “valores mais amplas, globais e cosmopolitas fundamentados na legislação europeia”.

Voltando ao início, o sociólogo perguntou: “O que quer dizer ser cidadão europeu? Como podemos evitar errar ao tentar criar uma Europa dos cidadãos, uma Europa de baixo para cima? Talvez isto não deva ser uma união de nações, mas uma união de cidades ou regiões da Europa”. Algo lhe parece certo, há que repensar e redefinir a soberania europeia e a visão europeia.

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