Escolas primárias encerradas desde 2005: O que são hoje?

Levantamento feito no PÚBLICO permite ver qual foi o destino dado a quase 4 mil escolas encerradas. Cerca de 20% não são utilizadas. Dar-lhes uma nova vida, aproximando gerações, pode ser uma solução para dinamizar as zonas rurais.

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escolas encerradas

Freguesia Concelho

Freguesia Concelho

A localização das escolas encerradas é aproximada, tendo em conta que em muitos casos só foi possível obter o nome da localidade onde estão situadas. Se tiver dados mais precisos sobre a localização (nome da rua ou lugar) ou alguma correcção/sugestão por favor envie para leitores@publico.pt

A placa de pedra onde se lê “Escola Primária” ainda está na parede exterior do edifício. Com duas salas de aulas, a escola foi construída no alto da serra, com uma vista aberta para o vale e rodeada de árvores. Fica em Gilbarbedo, um lugar numa freguesia com 371 habitantes, em Terras de Bouro, perto do Gerês.

Em 2008, a escola já tinha poucos alunos e fechou. Quatro anos depois passou a ser casa para duas famílias da freguesia. As obras feitas pela câmara municipal transformaram a escola em dois apartamentos de três assoalhadas, deixando ficar a fachada e parte do pátio coberto. A iniciativa partiu da câmara como resposta às necessidades das duas famílias e cada uma paga agora uma renda de 25 euros, contando com o apoio dos serviços municipais para a manutenção das casas.

A escola em Gilbarbedo é uma das 24 que fecharam em Terras de Bouro. É também uma das cerca de quatro mil escolas encerradas sobre as quais o PÚBLICO recolheu informação até Março de 2014, no âmbito de um projecto de investigação em jornalismo computacional (REACTION). O levantamento foi feito durante três meses junto de todas as câmaras municipais, sendo possível assim perceber qual a utilização dada aos edifícios, encerrados sobretudo a partir de 2005.

Dos 308 municípios, 269 enviaram informação, concluindo-se que houve concelhos, sobretudo no norte do país, onde fecharam entre 60 a 70 escolas, como Chaves, Vila Real, Valpaços ou Ourém. Outros, como Ponte de Lima, Mafra ou Amarante, viram fechar entre 40 a 50; e noutros casos, não fechou nenhuma, como em Vila Nova de Cerveira ou Cuba.

Livraria, forno comunitário e associações

Do total de escolas encerradas depois de 2005, 24% continuam sem utilização, ainda que algumas já tenham projectos planeados. Lamego, Chaves e Amarante são os municípios com mais escolas sem utilização, mas estão também entre os locais em que mais escolas fecharam. Para 5% do total, por desconhecimento da autarquia, não existe informação sobre o destino dado dos edifícios. Muitas escolas foram cedidas às juntas de freguesia, pelo que as câmaras municipais deixaram de ter conhecimento sobre a sua finalidade.

Cerca de 70% das escolas têm hoje novas funções e são muito variadas. A Escola Pinheiro da Cruz em Grândola, encerrada em 2006, é hoje espaço para o Estabelecimento Prisional de Pinheiro da Cruz. Em Vimioso, freguesia de Carção, uma das escolas passou a ser usada como forno comunitário e em Óbidos uma escola foi transformada em livraria. Outras, como a de Vila Verde em Resende que deu lugar a um centro interpretativo da cereja, passaram a alojar espaços culturais. E em Messines, no concelho de Silves, uma escola desapareceu com a construção da barragem do Funcho.

Reguengos de Monsaraz Uma escola acolhe um projecto da comunidade local, a Casa do Cante

Do total, um terço funciona como espaço para associações, clubes ou núcleos de vários tipos: desde a caça e pesca, aos automóveis e bicicletas, à columbofilia ou apicultura. Foi essa a iniciativa mais comum nas câmaras, por resolver dois problemas: dar resposta aos pedidos das associações para terem um espaço e não deixar as escolas ao abandono.

A Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz, por exemplo, atribuiu a associações e grupos comunitários três das cinco escolas fechadas. Uma funciona como associação de caçadores; outras duas acolheram projectos da comunidade local (Casa das Avós e Casa do Cante).

Casas e capelas

Transformar as escolas em habitação é menos comum. São apenas 35 as escolas que são casas e, entre elas, algumas foram vendidas a particulares. Para além de Terras de Bouro, também em Ponte de Lima, Santa Marta de Penaguião e Marvão há famílias alojadas nas antigas escolas.

No caso de Terras de Bouro, o investimento envolvido em Gilbarbedo, a cargo da autarquia, foi de oito mil euros. “A mão-de-obra foi do município e aproveitámos os recursos que temos. As casas foram equipadas com exaustor, fogão, esquentador ou cilindro, salamandra e lava-loiça”, explicou Liliana Machado, vereadora responsável pela acção social, educação, juventude, saúde e emprego.

Já os casos de escolas que funcionam como capelas, casas mortuárias ou espaços usados pelas paróquias são em maior número: são 87. Alcoutim é um desses casos: das 21 escolas encerradas, sete são capelas e uma é casa mortuária, criadas como resposta a pedidos da comunidade e por falta de espaços alternativos.

Ranchos e bandas filarmónicas também usam as escolas como espaços de ensaios. São mais de 100 pelo país fora e só em Soure são seis os espaços dedicadas aos grupos corais e musicais, entre as 21 escolas fechadas.

Há ainda postos da GNR e da PSP, como em Santiago do Cacém e em Beja; ou cafés e restaurantes, como em Vila Pouca de Aguiar, Boticas e Lajes das Flores. Cerca de 40 escolas funcionam como museus, teatros e bibliotecas; e, no total, cerca de 60 escolas foram vendidas ou ainda estão à venda.

Novas funções reflectem a demografia do país

O reordenamento da rede escolar teve o primeiro impulso em 2005 quando o Ministério da Educação decidiu encerrar as escolas com menos de dez alunos, alargando-se em 2010 às escolas com menos de 21 alunos. Segundo o Ministério da Educação e Ciência, entre o ano lectivo de 2005/2006 e 2012/2013 encerraram 4197 escolas.

Em Ourém, onde fecharam 63 escolas, “o reordenamento trouxe melhores condições aos alunos”, na opinião do presidente da câmara, Paulo Fonseca. “Se não vivêssemos este tempo agora, estávamos empenhados em fazer centros escolares e em cobrir totalmente a rede do concelho. Dada a situação e também a emigração – temos este ano menos 200 alunos, filhos de novos emigrantes – não se justifica investir em mais centros.”

Reguengos de Monsaraz A Casa das Avós deu uma nova vida às velhas gerações

Quanto à reutilização das escolas, a autarquia prefere “zelar pelo património”, mantendo os edifícios enquanto propriedade da câmara e assegurando a sua utilização através de protocolos de cedência a associações, por exemplo. “Quem vende, perde sempre. E a venda também não resolve nenhum problema financeiro.”

A Associação Nacional dos Municípios Portugueses (ANMP) reconhece o esforço financeiro dos municípios na construção dos centros escolares, no fornecimento de refeições, nas actividades extra-curriculares, assim como nos transportes das crianças, que “só foi suportado pelo Ministério da Educação nos dois ou três anos seguintes ao encerramento da escola”. No aproveitamento das antigas escolas a ANMP vê uma forma de “manter vivos os espaços colmatando aquilo que é a grande preocupação dos centros de baixa densidade populacional”.

Jovens e idosos de volta à escola

Há quem veja a situação de outro prisma. “Tirar as crianças das zonas rurais acelerou a sua desertificação. A partir do momento em que as crianças saíram, os pais também saíram. As comunidades ficaram mais pequenas, isoladas e perdidas”, considera Rui d’Espiney, sociólogo e presidente do Instituto de Comunidades Educativas (ICE), que desde os anos 1990 desenvolve um projecto de combate ao isolamento das escolas em zonas rurais através da interacção entre gerações.

Criar espaços de convívio para a população idosa, apostando na educação de adultos, torna possível em parte “compensar a perda” que a saída das escolas representou, aponta Rui d’Espiney. A Casa das Avós em Reguengos de Monsaraz é um dos exemplos de espaços de convívio, com a particularidade de ter sido criado por iniciativa da comunidade.

Em muitos casos é a população idosa que está a utilizar as escolas – há vários centros de dia, de convívio, de saúde ou pólos de formação para a terceira idade. Juntar-lhes os jovens, em projectos com uma abordagem integrada, “com mais proximidade e mais relações inter-geracionais”, é a sugestão dada por Fernando Ilídio Ferreira, professor no Instituto de Estudos da Criança da Universidade do Minho, que tem estudado a ligação da criança à escola.

Se a criação dos agrupamentos trouxe uma “perda da dimensão humana das relações” na opinião do professor, a reutilização das escolas consegue ter efeitos positivos: dar nova vida às comunidades locais ao trazer jovens e idosos para as antigas escolas é um deles.

Viver na escola

Três escolas em Terras de Bouro foram transformadas em habitações sociais pela câmara. Numa delas, na freguesia de Cibões, vivem duas famílias que partilham uma horta no antigo pátio da escola

Maria de Araújo nunca foi à escola e não aprendeu a ler. Só que o caminho que a vida levou pô-la a viver na antiga escola primária de Gilbarbedo, o mesmo lugar onde nasceu há 55 anos, no concelho de Terras de Bouro. Até há pouco mais de um ano vivia numa casa poucos metros abaixo da escola, onde pagava “30 contos de renda, em dinheiro antigo, já com ajuda da câmara”. Tinha sido mudada temporariamente pelos serviços municipais para se proteger da chuva que entrava na sua primeira casa, onde viveu sozinha os dois filhos, hoje com 24 e 33 anos.

Por fora, é como se a escola ainda fosse escola. Ficou a placa de pedra a identificar o lugar, presa a uma das paredes exteriores, ficou uma parte do pátio coberto e toda a zona à volta da escola, em tempos utilizada como pátio para os intervalos das aulas. Por dentro, a escola foi transformada em dois apartamentos de três assoalhadas cada. As duas antigas salas de aula, com enormes janelas cheias de luz e com vista para o pátio, hoje são os quartos.

Aos fins-de-semana, Maria de Araújo ainda tem a companhia da filha de 24 anos, Helena, que estuda Engenharia Civil em Guimarães, onde fica durante a semana. O filho mais velho, Paulo, vai ser pai da quarta filha e vive no Luxemburgo para onde emigrou para trabalhar na construção civil.

Ambos fizeram o ensino primário na casa onde a mãe hoje vive. “Era aqui pertinho”, bastava-lhes subir a rua e estavam à porta da escola. “Lembro-me que o Paulo descia da escola para casa sempre a assobiar. Quando não vinha a assobiar, tinha havido problemas”, lembra a mãe. Paulo desistiu cedo da escola, mas é ele hoje que incentiva a irmã e que ajuda a mãe.

Nova vida

Maria de Araújo trabalhou à jorna nos lugares vizinhos e até há um ano, quando se mudou, a sua única ligação à escola eram os filhos. “Só vinha às reuniões.” Foi o Inverno rigoroso de 2006 que deixou a chuva entrar na casa onde vivia. As más condições justificaram a intervenção dos serviços de acção social da câmara, mudando-a temporariamente para outra casa, até que em 2012, ainda antes do Natal, lhe entregaram as chaves da antiga escola.

Hoje Maria de Araújo reserva um quarto para quando o filho a visita com as netas, outro quarto para a filha quando vem aos fins-de-semana e outro para si. Ocupa os dias na loja social da câmara, onde tem de receber, escolher e arrumar roupas e outros materiais doados. “De manhã vou na carreira para baixo. Lá vou eu com os mocinhos todos.” Sai todos os dias por volta das oito e segue no autocarro da câmara que transporta as crianças das aldeias até à escola. É a única pessoa autorizada pela câmara a partilhar o autocarro gratuito dos alunos, de forma a garantir que consegue chegar todos os dias ao centro da vila.

João Pedro, de seis anos, sai à mesma hora e vai no autocarro com a vizinha até à escola. É um dos filhos de Ana Cristina Silva, a mãe a quem foi dado o outro apartamento da escola. É junto do muro que circunda a escola que ele e a irmã, Lara, de três anos, estacionam as bicicletas e é à volta da casa que os dois andam em círculos repetidos. É também ali no Verão que brincam na piscina insuflável que a mãe enche ou que a ajudam na horta de onde ela tira batatas, cebolas e couves.

Ana Cristina Silva, 31 anos, gostava de arranjar trabalho e não ter de passar o dia em casa a lavar e arrumar roupa, à espera que os filhos cheguem da escola. Vai relembrando isso aos serviços de acção social da câmara, mas a solução não é fácil. Enquanto nada aparece, dedica-se à horta e trabalha na terra de quem pontualmente lhe pede ajuda.

Passo em frente

Veio da Madeira em 2008 e foi lá que ficou a família. Lembra-se que foi no dia 19 de Novembro que chegou a Gilbarbedo com o marido e o filho de um mês. “Se lá fosse agora, de certeza que já não voltava para cá.”

Foi na Madeira que conheceu o marido, lenhador, nascido em Terras de Bouro. Depois de terem o primeiro filho, decidiram deixar a ilha e ficaram a viver em casa dos sogros de Ana Cristina. Houve duas notícias nos cinco anos seguintes: primeiro, o nascimento da filha; depois, a doença prolongada do marido, a quem ela dedicou todo o tempo possível até aos últimos dias. Ficou viúva antes de fazer 30 anos. A par da situação, a câmara decidiu aproveitar a escola para alojar a mãe e os dois filhos.

Terras de Bouro A câmara decidiu aproveitar a escola para alojar a mãe e os dois filhos

As casas foram entregues com fogão, exaustor, esquentador e salamandra. Cada família teve de as mobilar com o que tinham ou lhes foi dado “As casas são propriedade da câmara, mas as senhoras pagam uma renda e pagam também as suas despesas”, aponta Liliana Machado, vereadora responsável pela acção social, educação, juventude, saúde e emprego. Transformar a escola em habitação social custou à câmara oito mil euros, utilizando mão-de-obra do município.

A ideia de transformar as escolas em casas partiu da câmara inicialmente como uma situação de emergência, perante a necessidade de alojar uma família. Hoje são três as escolas transformadas em casas para um total de quatro famílias.

No total são 24 escolas encerradas no concelho: uma delas funciona como sede da Cooperativa de Apicultores das Serras Amarela e do Gerês e outra como Centro Municipal de Valências, juntando várias actividades desde o convívio sénior, à terapia da fala ou estudo acompanhado. Com um índice de envelhecimento de 195,2 idosos por 100 jovens, Terras de Bouro procura também dar resposta às necessidades de uma população envelhecida.

Quanto às oito escolas encerradas sem utilização, Liliana Machado explica que ainda não surgiram projectos para esses edifícios e que a intenção da câmara não é transformar todas as escolas em habitação social. É essencial ter em conta o valor arquitectónico dos edifícios e a vontade das povoações e das juntas de freguesia, explica.

Quatro anos depois de ter sido fechada, a escola de Gilbarbedo voltou a ser útil, com o consenso da população e da junta de freguesia. Para a câmara, a iniciativa resolveu vários problemas de habitação. Para Maria de Araújo e Ana Cristina Silva a transformação da escola significou um novo começo.

O pátio da escola serve de pista.
Uma família na escola.

“De velho se torna a menino.
E nós voltámos à escola outra vez”

Com fundos comunitários, uma escola foi transformada para acolher a sede de um grupo coral. Hoje é espaço para os ensaios de um grupo de cante alentejano e, para alguns dos cantadores, voltar à escola onde estudaram é fechar um ciclo de vida

As aulas começavam às nove da manhã e acabavam às três da tarde. Pelo meio, havia hora para almoço e a maior parte dos alunos ia a casa. Ficavam na escola apenas os que moravam nos montes mais distantes e que traziam a merenda “numa carteirazinha”.

Há 50 anos, havia seis alunos na quarta classe: um deles era Serafim Silva. Na única sala de aulas da escola, estudavam os alunos dos quatro anos com uma só professora. Havia três filas de carteiras, uma para cada ano, e no fundo da sala ficavam os alunos da “primeira classe”, por serem mais.

Foi ali na aldeia de Telheiro, concelho de Reguengos de Monsaraz, que Serafim Silva, hoje com 64 anos, fez o ensino primário. Relembra que a estrutura da sala se mantém como era. O quadro ficava na parede ao lado da secretária da professora, na outra parede ao lado ficavam os mapas nos quais tinham de ir localizar os países que a professora pedia e do lado oposto ficavam as janelas que ainda lá estão.

“Era aqui onde se cumpriam os castigos, como as orelhas de burro. Abria-se a janela e os alunos ficavam ali um quarto de hora com orelhas de burro a cumprir o castigo.” Serafim ainda se lembra bem do sítio onde ficava a sua carteira, logo à frente, onde se posiciona de pés juntos para mostrar.

Foi em 1957 que entrou na escola, saiu em 1961. Nessa altura, rapazes e raparigas partilhavam a mesma sala de aulas, mas o mesmo não acontecia no pátio. “Havia um alpendre, que era um ponto de recolha de rapazes e raparigas em tempo de chuva. Mas a parte circundante da escola era destinada às raparigas, onde elas faziam canteiros e semeavam flores durante todo o ano. A parte de baixo, maior, tinha uma faixa de eucaliptos de cada lado, onde os rapazes jogavam à pata, à bola, ao eixo. Ao lado, cavavam e semeavam favas, ervilhas e batatas.”

Da escola ao campo

No final dos quatro anos, foi dispensado do exame oral. “Fiz a prova escrita num dia, no outro fui guardar gado.” Andou no campo até aos 14 anos, quando arranjou um trabalho numa empresa entretanto desmontada com a construção da barragem do Alqueva.

O que o salvava, conta, eram as bibliotecas itinerantes da Gulbenkian. “Fui um assíduo consumidor de livros. Depois tirei um curso de música por correspondência, um curso de rádio, electrónica e televisão, e um de desenho técnico”. Estudou à noite e acabou o ensino profissionalizante, já era casado e tinha uma filha.

Ensaio do Cante Uma escola acolhe um projecto da comunidade local, a Casa do Cante

À escola primária onde andou, Serafim só voltou para os ensaios do grupo de cante alentejano, do qual hoje é mestre (ensaiador). “Nunca daqui abalei, assisti às transformações todas da escola.”

Quando ficou devoluta, a câmara cedeu a escola ao Grupo Coral e Desportivo da Freguesia de Monsaraz, uma associação da qual o grupo de cante faz parte. A cedência a uma associação é o caso mais comum de reutilização das escolas – são 796 as escolas ocupadas por associações, núcleos, grupos ou sociedades, representando um terço do destino dado às escolas com novas funções.

“Quando regressámos aqui, com a função que a escola agora tem, disse para o meu colega: ‘Rapaz, nós já vamos estando velhotes. De velho se torna a menino. E nós voltámos à escola outra vez’.”

Casa do Cante

A escola primária na aldeia de Telheiro, hoje com 147 habitantes, foi encerrada em 2003 por ter poucos alunos. Para além desta, outras três foram desactivadas no município – numa funciona a Casa das Avós, noutra a sede de uma associação de caçadores e na terceira está em desenvolvimento um projecto de astroturismo.

Ensaio do Cante Uma escola acolhe um projecto da comunidade local, a Casa do Cante
Ensaio do Cante Uma escola acolhe um projecto da comunidade local, a Casa do Cante

Até então o grupo coral ensaiava numa outra escola desactivada, muito antiga, ainda dentro das muralhas do castelo, que deixou de estar disponível. “Ficámos sem sítio para ensaiar. Fizemos um protocolo com a câmara para a utilização deste espaço que estava devoluto e eles acederam ao nosso pedido”, conta Fernando Cardoso, presidente do grupo de cante e antigo aluno da escola primária de Telheiro.

Em colaboração com a câmara, fizeram uma candidatura do projecto de renovação da escola aos fundos comunitários do Proder (Programa de Desenvolvimento Regional). A candidatura foi aceite e nasceu a Casa do Cante.

Bar da Casa do Cante Uma escola acolhe um projecto da comunidade local, a Casa do Cante

Foi mantida a estrutura exterior e interior da escola, excepto o alpendre – passou a estar fechado para funcionar como bar e sala de convívio. A antiga sala foi equipada para ter condições acústicas para a recolha de áudio e a entrada da escola onde antigamente estavam os cacifos funciona hoje como hall onde estão expostas fotografias do grupo.

“Os grandes custos da casa do cante foram financiados por fundos comunitários do Proder. Teve de ter uma obra estrutural, que implicou condições acústicas para gravação de som, e o espaço exterior teve de ser adaptado para eventuais actuações. Estamos a falar de um projecto na casa dos 40 ou 50 mil euros”, explica o presidente da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz, José Calixto.

Parar onde se começou

São 27 os cantadores que fazem parte do grupo, todos alentejanos, na sua maioria naturais do concelho. Todas as sextas-feiras, às 20h30, depois do jantar, realizam-se os ensaios, abertos a visitantes, na mesma sala onde Serafim Silva e Joaquim Cardoso estudaram.

Serafim ainda se lembra das rivalidades entre os rapazes de freguesias diferentes, assim como se lembra de pedir carrinhos de linhas às costureiras da aldeia para as brincadeiras em grupo. “Telheiro era talvez a aldeia mais industrializada do concelho, havia aqui padeiros, calceteiros, latoeiros, correeiros, alfaiates e também mercearias e uma loja de fabrico de telhas, de onde vem o nome da aldeia.”

Hoje, 50 anos depois, para além de Serafim Silva, também Joaquim Cardoso vê o regresso à escola como o fim de um ciclo. “Vivi sempre aqui. Tenho feito sempre aqui a minha vida e sempre tive contacto com a escola. Voltar para aqui não é mais do que dizer que o sítio onde comecei é um dos sítios onde se calhar vou parar.”

Na Casa do Cante, as vozes aquecem-se ensaiando.
Na Casa do Cante também há um espaço de convívio.

Combater a solidão
a fazer bordados na antiga escola da aldeia

A iniciativa de um grupo de mulheres deu origem à Casa das Avós, a funcionar na antiga escola primária de Motrinos, em Reguengos de Monsaraz

A conversa de um grupo de mulheres da aldeia de Motrinos e dos montes mais próximos começou numa ida à missa. Queriam ter um espaço onde se pudessem juntar para falar e jogar às cartas, porque passavam demasiado tempo sozinhas em casa. Procuraram ajuda e combinaram uma reunião com o presidente da junta de freguesia de Monsaraz.

“Ele até ficou admirado quando viu tanta velha. Pensava que estavam duas ou três e estavam umas 12 ou 13”, conta Ana Silva Fenda, 76 anos. O grupo, entre os 58 e os 80 anos, apresentou a ideia: queriam utilizar a escola devoluta, fechada desde 2004, para se encontrarem na aldeia de Motrinos, com 107 habitantes.

Pouco tempo depois foi aprovada a proposta e dado o nome ao novo projecto comunitário: Casa das Avós. Se inicialmente a ideia era terem um espaço para falarem e jogarem às cartas, rapidamente veio a primeira tarefa. “O nosso presidente [da junta de freguesia] pediu-nos para fazermos os vestidos das marchas das meninas da escola, a única escola da freguesia, no Outeiro. Fizemos os vestidinhos para elas irem pelo Santo António. Foi a nossa primeira obra.”

Almoço As que vivem na aldeia chegam às dez da manhã e trazem a marmita para o almoço

Desde então dedicaram-se a fazer bonecas de pano e sacos de pão em pano bordado, que vendem nas feiras da região. Encontram-se na escola duas vezes por semana, terças e quintas-feiras. As que vivem na aldeia, mais perto da escola, chegam às dez da manhã e trazem a marmita para o almoço. Outras descem devagar dos montes e só vêm depois de almoço. Mas só as viúvas – que são oito no grupo de 13 – almoçam na escola. É que as que têm os maridos vivos têm de ir a casa para lhes preparar o almoço.

Todas anseiam os dias de ida para a escola: são esses os dias que preenchem as semanas. Nos dias restantes ficam em casa. “Estamos todas sozinhas, nenhuma tem filhos em casa. Aquela tem os filhos em França, os meus estão em Sintra, aquela senhora não os tem. Acabávamos por estar sempre sozinhas.”

Enquanto bordam, vão falando ou rezando – raramente cantam, porque algumas continuam de luto. Para algumas das senhoras aquela foi a escola onde andaram os filhos. Só uma delas fez o ensino primário naquela escola. As outras estudaram noutras escolas, como conta Antónia Maria Fernandes, 79 anos. “Fiz a primeira e a segunda classe. Quando o meu pai viu que já sabia escrever o nome, disse-me que já não precisava de ir mais à escola.”

Nova vida à escola

É numa das duas salas de aulas da antiga escola primária de Motrinos que hoje estas avós trabalham, sentadas em bancos diferentes e de vários tamanhos. Cada uma leva o seu saco com as várias agulhas, linhas, almofadas pequenas com alfinetes espetados e os vários lenços, naperons, rendas e malhas que vão fazendo ao mesmo tempo. Outras estão a fazer os cabelos das bonecas em lã, a coser os vestidos à máquina ou a desenhar calças de ganga para os bonecos.

Nos vidros das janelas da sala ainda está um pato autocolante, na sala ainda há cadeiras antigas na escola e na parede continua afixado o crucifixo que ficava por cima do quadro. O hall de entrada mantem os cabides e é nesse espaço que deixam as cestas de verga com a marmita para o almoço ou onde preparam em conjunto uma açorda de alho que comem no alpendre do antigo pátio da escola.

Reguengos de Monsaraz Uma escola acolhe um projecto da comunidade local, a Casa das Avós

À volta a paisagem é ampla e plana, no sopé de Monsaraz. O espaço fora da escola não foi recuperado, mas está na lista de afazeres da câmara. “A Casa das Avós foi um projecto de imediato abraçado porque tinha sustentabilidade. Na parte exterior as condições ainda vão melhorar, para permitir o usufruto desse espaço”, aponta José Calixto, presidente da Câmara Municipal de Reguengos de Monsaraz.

Iniciativas da comunidade

Sobre a recuperação e requalificação da escola, o autarca explica ter sido um projecto feito “com a prata da casa”, contando com os funcionários municipais, com custos mais baixos, diferente do investimento feito na Casa do Cante.

Por trás da escolha dos projectos para as antigas escolas, esteve uma análise da sustentabilidade das propostas. “Quando atribuímos uma escola a alguma associação, o projecto deve ter sustentabilidade no futuro, não ser megalómano e depois não termos condições de o preservar”, considera José Calixto. Ou seja, a preferência é que os projectos venham de iniciativas da comunidade, que depois assegure a manutenção desse projecto “Nós fazemos o investimento, a comunidade faz o funcionamento.”

Nenhuma destas mulheres imaginou que a ideia discutida à saída da missa chegasse onde chegou e tivesse a sustentabilidade que a câmara lhe atribuiu. Nem imaginavam que viessem a ter visitantes e que fosse dado tanto valor às bonecas de pano ou aos sacos do pão que sempre souberam fazer. “Íamos para lá falar umas com as outras, jogar às cartas. Nem tivemos vagar para jogar. Mas falar, nós falamos sempre.”

A avós da Casa das Avós.
Na Casa das Avós a boa disposição é garantida.