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Elisa Rodrigues: uma voz deslumbrante

Jazz

Um potencial imenso

Elisa Rodrigues vai dar que falar nos próximos tempos.

Nuno Catarino

Elisa Rodrigues

Heart Mouth Dialogues

JACC Records

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A primeira coisa que se ouve em Heart Mouth Dialogues é o piano de Júlio Resende. O autor de You taste like a song é uma peça fundamental neste álbum e além de trabalhar o tapete instrumental (inteligentemente sóbrio, com arranjos funcionais, abrindo espaço para a voz), dá uma mãozinha na produção. A acompanhar o pianista entram, na secção rítmica, os inspirados Cícero Lee no contrabaixo e Joel Silva na bateria (o baterista Bruno Pedroso participa num tema).

Com uma voz bonita, forte e versátil, Elisa Rodrigues desvenda um potencial imenso, que o futuro irá encarregar de confirmar. Desde logo revela muita segurança, pouco comum numa estreia: fugindo aos tempos dos temas com à-vontade, nunca se perdendo, dominando cada palavra, desviando-se de melodia com subtileza. Mostra ainda capacidade de se adaptar a diferentes ambientes, ora com alta intensidade nos temas mais acesos, ora doce nos momentos baladeiros.

O álbum abre com a perfeita Ain"t no Sunshine (Bill Withers) e combina ao longo do alinhamento três standards (You don"t know what love is, Blame it on my youth e Cry me a river) com canções pop e rock (Beach Boys, Nirvana, Police, CocoRosie), sobrando ainda um tema original. O resultado final acaba por soar a salganhada estilística que, mesmo tendo em conta o esforço pela uniformização, acaba por não ser suficiente para dar sentido ao todo.

Ainda que imperfeito como objecto-disco, Heart Mouth Dialogues é um bom cartão de visita, deixando-nos a aguardar por um trabalho mais consistente e coerente no futuro. Contudo, chega para nos deixar convencidos do potencial desta voz deslumbrante, possuidora de uma grande solidez. Sem sombra de dúvida, Elisa Rodrigues vai dar muito que falar nos próximos tempos. Nuno Catarino

Clássica

O talentoso Sr. Berlioz

A grande figura do romantismo francês em gravações de excelência com instrumentos de época. Rui Pereira

Hector Berlioz

Harold en italie; Les nuits d"été; Ler oi de thulé

Anne Sofie von Otter, meio-soprano; Antoine Tamestit, viola

Marc Minkovski, direcção musical

Les Musiciens du Louvre

Naïve V5266

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Com as célebres Nuits d"été abriu o género da "mélodie". Com Harold en Italie prosseguiu o princípio da "ideia fixa" iniciado com a Sinfonia fantástica, mas desta feita numa obra concertante. Na ópera A condenação de Fausto, elevou o estatuto da "grand opéra" ao ponto de ombrear com as grandes composições de Richard Wagner. Falamos do talentoso Sr. Berlioz (1803-1869) e das obras que este CD reúne em interpretações de excelência. Ressalte-se a sonoridade dos instrumentos de época dos Musiciens du Louvre, os quais proporcionam um maior equilíbrio entre tutti e solista do que aquele a que nos habituamos com as grandes massas sonoras das orquestras sinfónicas modernas. A viola de arco de Antoine Tamestit é muito expressiva e beneficia da direcção cristalina e enérgica de Minkovski.

As Nuits d"été beneficiam igualmente da sonoridade dos instrumentos de época e da interpretação extremamente polida de Anne Sofie von Otter. A versão orquestral destas primordiais "mélodies" surge igualmente mais equilibrada, fazendo sobressair a beleza natural das linhas melódicas sobre as suaves matizes do tecido instrumental. Diga-se que von Otter já contava com uma belíssima interpretação destas canções na companhia da Filarmónica de Berlim sob a direcção de Levine. A escolha de uma ária, Le roi de Thulé da ópera La Damnation de Faust, onde a voz entra em diálogo directo com a viola foi uma escolha excelente para encerrar o disco com um encontro entre dois solistas de eleição.

Pop

Corpo jovem em voz madura

Home Again

Michael Kiwanuka

Polydor, distri. Universal

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Nestas coisas nunca se sabe, mas na teoria tem tudo para dar certo. Possui ligações à cena folk londrina personificada por Laura Marling. É um cantor-compositor confessional numa altura em que cantoras como Adele dominam o mercado. As canções têm preocupações espirituais. As principais inspirações são bem antigas (Marvin Gaye, Otis Redding, Hendrix, Terry Callier) numa época em que revisitar o passado parece ser a atitude mais em voga quando se fala de soul, folk ou jazz dos anos 70. Ou seja, a sua música acaba por encaixar bem na vaga memorialista pós-Amy Winehouse.

Dir-se-ia que é um daqueles produtos imaginados por uma grande editora - neste caso, a Universal - para colmatar o entusiamo de uma parcela significativa do mercado, que tanto se revê em Amy Winehouse como em Aloe Blacc ou Mayer Hawthorne. Longe, portanto, das aventuras soul futuristas dos The Weeknd ou Lapalux. E no entanto existe qualquer coisa em Michael Kiwanuka que atrai. Não é só o facto de ser um corpo jovem de 25 anos numa voz madura, ou a evidência das suas canções respirarem uma qualidade sonora calorosa e genuína. Mas também a circunstância do álbum de estreia percorrer várias avenidas (soul, folk, dub, funk, jazz) sem nunca deixar de perder o rumo.

É um disco de soul-folk que soa sempre espontâneo, nunca se deixando enredar no calculismo. Se existe qualquer coisa a apontar a Home Again é o facto de não conseguir manter a fasquia elevada de forma uniforme, com canções como Tell me a tale, I"m getting ready ou I"ll get along a revelarem uma luminosidade e um labor orquestral que as restantes nunca chegam a alcan? ?ar. Mas isso não significa que o álbum de estreia de Kiwanuka não seja obra fluída, porque é-o sem esforço. É um pouco como entrar numa loja de roupa em 2ª mão. Primeiro perguntamo-nos porque estamos ali e, depois, aos poucos, vamos descobrindo pormenores invulgares que acabam por conquistar. Vítor Belanciano

Lamento muito

Kayhan Kalhor

I Will Not Stand Alone

World Village; distri. Harmonia Mundi

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Em meados de 2009, por altura das eleições presidenciais iranianas que deram uma vitória retumbante a Mahmoud Ahmadinejad, o músico Kayhan Kalhor decidiu ficar junto do seu povo, deixar de frequentar os aeroportos que o levavam constantemente de visita às salas mais prestigiadas de todo o mundo (a solo ou a bordo do Silk Road Project, liderado por Yo-Yo Ma) e preferiu tocar para os seus, ao mesmo tempo que, diz ele, sentia a escuridão e a violência a ganharem terreno ao seu redor. Foi então que começou a compor num novo instrumento, uma nova derivação do kamancheh (espécie de violino no qual tem reinterpretado com brilhantismo a música tradicional persa), num tempo de recolhimento que o conduziu a uma série de composições doentiamente tristes e belas. I Will Not Stand Alone não é, portanto, uma forma de evasão desse ambiente em que se encontrava, mas antes uma forma de se afundar nele e daí regressar com uma correspondência musical para esse período.

Por isso, e por muito que Kalhor jure haver por aqui uma luz a que nos podemos agarrar, a música nunca abandona um tom desesperançado, quer siga um caminho mais dolente e medidativo, quer se entregue mais obviamente a um longo lamento arrancado ao que os olhos de Kalhor viram nesses meses (Between the Heavens and Me), quer desenhe uma fuga mais virtuosística. O mais surpreendente é que neste trajecto a música se acerque, nalguns momentos, àquilo que conhecemos aos húngaros Muzsikás, habituais companheiros de cordas da voz de Márta Sebestyén. Mas não passa de uma curiosidade identificável no constante carrossel dos diálogos vertiginosos entre o shah kaman de Kalhor e o santour de Ali Bahrami Fard. Uma magnífica e portentosa beleza em forma de grito abafado Gonçalo Frota

Tiro no pé

The Magnetic Fields

Love at the Bottom of the Sea

Domino

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Stephin Merritt há-de transportar sempre à volta do pescoço um albatroz chamado 69 Love Songs, encontro perfeito de um artífice de canções a meio caminho entre os grandes clássicos americanos e os grandes classicistas modernos (o espírito de Cole Porter, a corrosão de Elvis Costello) e uma estratégia conceptual de sabotagem pop (um triplo álbum com canções de amor de todo o tamanho e feitio). De repente, o nova-iorquino tornou-se a coqueluche du jour, os seus projectos paralelos (The 6ths, Gothic Archies) tornaram-se notados, uma editora "séria" (a Nonesuch) veio bater-lhe à porta. E, como se fosse preciso sabotar a recém-conquistada popularidade, vá de Merritt fazer de seguida três álbuns que não eram 69 Love Songs (como se algum outro o pudesse voltar a ser!), a "trilogia não-electrónica" formada por I (2004), Distortion (2008) e Realism (2010).

Agora de regresso ao circuito independente e aos sintetizadores depois de ter desbaratado a boa vontade que os fãs ganhos com o triplo álbum de 1999 lhe foram prodigalizando, o novo Love at the Bottom of the Sea pode ser visto como a "prova dos nove" para evitar que Merritt se torne no novo Momus, outro artesão pop demasiado angular chutado para canto esgotados os seus 15 minutos de fama. Mas não responde à pergunta de modo satisfatório. Sim, há bons mots q.b. ("better get your derrière to my husband"s pied-à-terre", "you beter think of something quick because my suitcase is packed", "the only girl I ever loved was Andrew in drag") e três ou quatro canções para a lista dos clássicos instantâneos (com o single Andrew in Drag e All She Cares About Is Mariachi à cabeça da lista). Mas há também menos clássicos instantâneos do que é habitual e a sensação de que Love at the Bottom of the Sea não passa de uma colecção preguiçosa de maquetas a precisar de trabalho, cujas melodias de caixinha de música e letras a escorrer ironia estão deliberadamente escondidas por trás de camadas de electrónica arty-noisy que Merritt define nas notas de imprensa como "enxames electrónicos de grilos". Ou seja, mais estratégias conceptuais de sabotagem artística por um songwriter de primeira água que parece fazer gala em dar tiros no pé. Jorge Mourinha

Pega-Monstro

Pega-Monstro

Cafetra; distri. Mbari

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Há quem seja dissimulado, há quem seja cauteloso e depois há as Pega-Monstro, que logo em Carocho, a primeira canção do disco de estreia, põem tudo às claras: atacam com violência os timbalões, enchem as guitarras de sujeira e a voz entre o enraivecido e o "blasé" desata a berrar "Porque nada faz bem" com uma urgência danada. A dada altura, Maria canta "Não quero ir à escola/ não quero virar lixo como os tios/ não quero virar carocho" e isto não é poesia mas diz, com uma simplicidade desarmante, de como os putos se sentem hoje. Sem dar tempo para que o ouvinte se refaça do "uppercut" que levou, elas disparam uma bomba noise, Não te metas comigo, Bro, com uma melodia encantadora e um refrão magnífico (em que possivelmente cometem actos de abuso sobre os pratos-de-choque). Ao fim de cinco minutos estão a gritar "Há gajas que gostam de levar na boca", em Dom Docas, acabando com "Não gosto de ter nódoas negras na cocha". Não é apenas a fúria e a melodia que tornam a estreia das Pega-Monstro um objecto vital - é também esta capacidade de falar de coisas sérias com palavras da rua. Quem as acusa de cantar sobre merdinhas que não interessam a ninguém devia parar para ouvir com atenção: as letras revelam com rara destreza os tédios e conflitos do mundo da classe média-baixa, classe média-média portuguesa. Até ao fim há mais um punhado de canções deliciosas: Lisboa-Porto, Fetra, a bojarda disparada de Akon, Savanna 74 e Pall Mall, uma maravilha punk-pastilha-elástica com os coros todos no sítio. Afta, talvez seja o tema mais fraco do conjunto, Suggah indicia que há um futuro mais sofisticado a explorar e em Homosec, entre órgãozinhos e coros, canta-se com uma candura adorável sobre não ter amigas, só ter "amigos e a minha mãe". Certo, tudo se reduz à combinação do riff certo com a melodia certa. Mas elas oferecem-nos o que só o rock sabe oferecer: aquele instante de respiração, em que tudo o que trazemos abafado pode ser gritado, aquela simples esperança de libertação que só se encontra num refrão. E é isto que torna a estreia das Pega-Monstro importante, para mais num país de gente que nunca fez xixi nem cocó, nunca cuspiu para o chão e quem fodeu a namorada do amigo não fui eu. João Bonifácio

Capicua

Capicua

Optimus Discus

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Para que a estreia de Capicua não fosse esquecida bastava uma canção: 1º Dia, com a moça entregando rimas de escrita imaculada com uma facilidade desarmante. Em fundo há um beat maravilhoso de D-One, metais soul classy e teclas vintage: alta, alta canção. Vale a pena atentar em D-One, porque é dele o espantoso beat da óptima A volta: linhas de baixo soul, órgãos vintage, guitarrinha funky, metais a levantar, uma fasquia alta a que o flow de Capicua corresponde à grande - aquela subida no final é arrepiante, cinco estrelas. Mas ainda há Medo do medo, rimas frenéticas a sucederem-se sobre um beat escuro pontilhado por palmas e um quase break-beat que provoca ansiedade. Em Hora certa um loop de piano é dobrado por metais, criando um fundo melancólico para a entrega das rimas prenhas de raiva sob o fim do amor: "Arrastar carcaças é desporto que não presta", atira Capicua, e palminhas que a rima é alta e exacta. As grandes canções sucedem-se e Os heróis começa com uma marimba que recorda Bristol e acaba com cordas quase disco, uma delícia. É assim até ao fim: beats imaginativos, flow com força, rimas precisas (o talento desta moça para a escrita não pode ser desprezado), e aquilo que faz a diferença: a capacidade de ser íntima aqui, bruta ali, efusiva quando necessário, mas mantendo sempre, sempre, uma espécie de força vital. Muito bom. J.B.

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